2013/09/10

Indicador

Fixo o almoço: sopa de feijão e uma pêra cozida num líquido licoroso. O jornal está aberto. Finjo ler. Recordo o desenho do meu sobrinho, a boca do meu irmão, o sonho de domingo interrompido pelo telefonema da Dá. Distraio-me com pensamentos soltos, lembranças felizes, mas, atrás, correm as imagens de sempre, latentes, dolorosas. Desejo o vazio, isso e aprender a deslizar o indicador no ecrã de um telefone. Sinto o cheiro da minha transpiração e noto pêlos escuros nas pernas. Mantenho-as, porém, cruzadas, à vista, para que sejam observadas na sua triste mornidão pelos homens que esperam na fila. Enquanto levo a colher à boca observo o rapaz das sopas, há doze anos que o vejo ali, entre a Rosa e a Fátima, sempre no mesmo aprumo: pega na concha, mete-a na panela, dá duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la vertical e, com um rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela. Para além de ser excepcionalmente bom naquilo que faz, o João é gentil, doce. Imagino-o a viver com uma avó, os dois, felizes por se terem, a observar a cintilação do televisor. É isto a minha vida. Almoçar sozinha, imaginar as noites do rapaz que serve sopas e mostrar as pernas aos homens que aguardam na fila do refeitório.