2014/05/26

Segundo Sexo

Mal entrou no carro reparou no livro pousado no assento. Passou a mão pela barba e falou:
- Sabes uma coisa, Ana Clara?
- O quê?
- A Simone de Beauvoir só escreveu este livro porque o Sartre nunca foi capaz de lhe dar o que ela precisava…
Sem esperar resposta, colocou o cinto e começou a explicar o melhor caminho para chegar à Rua Capitão Renato Baptista. As minhas entranhas agitaram-se, o calor da noite deu-me uma súbita sufocação ao corpo; tive a sensação de que só me libertaria da náusea se abrisse a boca e, calmamente, lhe dissesse “Vai para o caralho” ou “Vai para a grande e malcheirosa puta que te pariu” ou simplesmente “Vai levar no cu”. Não disse nada. Conhecia-o há pouco tempo e a sua personalidade neurótica, também a sua erudição, ainda me deslumbravam. Engoli em seco, meti a primeira e, a explodir por dentro, arranquei em direcção à Rua Capitão Renato Baptista. Isto passou-se há mais de dois anos. Há muito tempo que não via o meu amigo, mas, ontem, encontrei-o à saída do cinema com uma mulher jovem, bonita, com um minúsculo pingente brilhante no nariz. Recordei o comentário que largou naquela noite. Recordei o meu silêncio. Quis puxar-lhe pela aba do casaco, retomar o assunto, dizer-lhe exactamente o que penso dele. Sem filtros, sem diplomacia, usando o insulto e, sobretudo, a mesquinhez. Voltei a calar-me. Agora, sinto-me fraca, miserável. Custa-me ser cobarde. Tenho vergonha de o ser.