Mal entrou no carro reparou no livro pousado no
assento. Passou a mão pela barba e falou:
- Sabes uma coisa, Ana Clara?
- O quê?
- A Simone de Beauvoir só escreveu este livro
porque o Sartre nunca foi capaz de lhe dar o que ela precisava…
Sem esperar resposta, colocou o cinto e
começou a explicar o melhor caminho para chegar à Rua Capitão Renato Baptista. As
minhas entranhas agitaram-se, o calor da noite deu-me uma súbita sufocação ao
corpo; tive a sensação de que só me libertaria da náusea se abrisse a boca e, calmamente,
lhe dissesse “Vai para o caralho” ou
“Vai para a grande e malcheirosa puta que
te pariu” ou simplesmente “Vai levar
no cu”. Não disse nada. Conhecia-o há pouco tempo e a sua personalidade neurótica,
também a sua erudição, ainda me deslumbravam. Engoli em seco, meti a primeira e,
a explodir por dentro, arranquei em direcção à Rua Capitão Renato Baptista.
Isto passou-se há mais de dois anos. Há muito tempo que não via o meu amigo, mas, ontem, encontrei-o à saída
do cinema com uma mulher jovem, bonita, com um minúsculo pingente brilhante no nariz.
Recordei o comentário que largou naquela noite. Recordei o meu silêncio. Quis puxar-lhe
pela aba do casaco, retomar o assunto, dizer-lhe exactamente o que penso dele.
Sem filtros, sem diplomacia, usando o insulto e, sobretudo, a mesquinhez. Voltei
a calar-me. Agora, sinto-me fraca, miserável. Custa-me
ser cobarde. Tenho vergonha de o ser.