2014/08/23

Sapatos Vermelhos

Comprei uns lindos sapatos de verniz vermelho em Dunquerque.  Fui a Calais comer ostras e mostrar aos meus filhos, como se de animais em cativeiro se tratasse, os imigrantes que vieram para atravessar o mar. Não foi difícil descobri-los. Negros, retintos, agasalhos quentes por cima de trapos rasgados. Estavam num terreno árido, longe do centro da cidade, uns sentados em silêncio, outros fazendo fila para conseguir um prato de sopa. Comovi-me por um instante e depois esqueci-os.  Passeei na praia de Malo les Bains, sentindo o vento frio no rosto e notando a marca das pegadas do Joaquim (corria mais à frente, gritava para espantar as gaivotas). Mulheres sentadas em cadeiras de lona, a apanhar sol. Uma avó magra, de biquíni azul e touca amarela, brincava com os netos e, sem pudor, mostrava o seu corpo anquilosado, suas peles flácidas, seus lentigos, sua magnífica velhice. Um grupo de rapazes asiáticos fotografava-se junto ao mar e, ao longe, o pontão de Leffrinckoucke surgia coberto por uma leve neblina cinzenta. O mar pareceu-me estranhamente calmo. Esperava um mar escuro, revolto, perigoso. Comemos gelados americanos todos os dias. Hesitei entre tantos sabores desconhecidos; um dia, depois de ter estado a observar um menino gordo a saltar nas camas elásticas, escolhi gelado de violeta e a boca encheu-se daquele creme suave, lilás, muito perfumado, ligeiramente enjoativo. Em Bergues, imaginei o céu repleto de aviões, os alemães marchando nas ruas da aldeia, sem notar a beleza das begónias amarelas. Subi à torre de Bergues e, lá no alto, ao olhar o casario e a torre negra de uma abadia, senti vertigens, os meus olhos ficaram embaciados e o meu coração bateu, acelerado. Jantámos quase sempre fora, em restaurantes familiares, baratos e com cheiro a fritos. Uma noite, enjoada de hambúrgueres e batatas fritas, cozinhei coelho com ameixas para os meus filhos. Ficou muito bom, a Madalena repetiu duas vezes.  Reli “Mrs. Dalloway” à luz fraca de um candeeiro de abajour amarelo. Não sei explicar o que há na escrita da Virgínia Woolf que tanto me prende.  Já li análises, assisti a documentários, já li até uma tese de mestrado de uma rapariga brasileira sobre a estética feminista na sua obra. Conheço a essencialidade, a modernidade, a força imensa da sua escrita, mas, quando leio os seus livros (os romances, sobretudo "Rumo ao Farol"), todas as análises, estudos, comentários me parecem comezinhos, insuficientes. Falta qualquer coisa. Há um mistério secreto na escrita da Virgínia Woolf; suponho que nunca o descobrirei.