2014/08/26

Sombra

A Madalena veio ter à minha cama. Não sei como lá fomos dar, mas acabámos a falar da memória. Expliquei-lhe como funciona a minha memória, como sempre funcionou, como é estranha, ineficaz, tudo esquece, assimila apenas pormenores, insignificâncias, quase sempre imagens sem possibilidade de interpretação ou análise. Para exemplificar, disse-lhe que me lembrava perfeitamente dos ténis que usei no funeral do meu avô (tinha onze anos). Uns ténis vermelhos, da Adidas, comprados na Suíça. Recordo que caminhava no meio do cortejo fúnebre - velhas de lenço na cabeça, envoltas em xailes com cheiro a fumo, homens de rugas fundas e mãos calejadas - sem experimentar propriamente angústia ou sofrimento. Até que uma mulher olhou com censura para os meus ténis vermelhos. Acrescentei que também me recordava, com nitidez, ainda em Maputo, do exacto tom de azul do copo de plástico que um menino segurava no refeitório. Não me lembro do rosto dessa criança, não sou capaz de dizer se era magro, gordo, bonito ou feio, só me lembro das suas mãos segurando o copo de plástico azul. A minha filha escutou-me, depois fechou os olhos como se procurasse uma memória que pudesse acompanhar as minhas. Pouco depois, abriu os olhos e falou: “Lembro-me do dia em que os treinadores trouxeram o praticável. Fiz vários saltos de mãos para experimentar os tapetes novos. Lembro-me perfeitamente da minha sombra projectada no chão do ginásio”. Beijei-lhe os cabelos e mandei-a para a cama. Muito bela, a memória da minha filha, aliás, não consigo imaginar memória mais bela do que a dela, a da sua própria da própria sombra.