2015/03/13

Lírios azuis

César Augusto, imperador baiano, vive num quarto alugado. Para além dele, explicou-lhe a senhoria, vivem no apartamento dois homens, cada um em seu quarto, partilhando a cozinha e a casa de banho. Quando se mudou, César Augusto, habituado ao ruído do seu lar (vivia com a mulher, três filhos adolescentes e uma cadelinha de pêlo cerdoso), estranhou o silêncio da casa. Um dia, ao telefone, fumava eu no estendal, falou-me desse silêncio. É uma calma misteriosa, Ana Clara. Já cá estou há duas semanas e ainda não me cruzei com nenhum desses homens, nunca os vejo, não os oiço sair ou chegar. Pressinto a sua presença, vejo cabelos no chão da casa de banho, às vezes, sinto um leve cheiro a água-de-colónia. Ontem, no frigorífico encontrei duas bananas maduras, metade de um frango assado e uma caixa com sopa fresca. 

No dia seguinte, à hora de almoço, resolvi visitar o meu amigo. Subi as escadas escuras do velho prédio e bati à porta do apartamento. Assim que César Augusto abriu a porta, entreguei-lhe um pequeno ramo de lírios azuis. Gentil, compreendendo a razão da minha oferta, o imperador baiano cumprimentou-me com um beijo nos lábios e fez-me entrar no seu novo lar, uma divisão espaçosa com uma grande janela de guilhotina  a dar para o renovado largo do Intendente. Pelo seu ar de satisfação, rosto subitamente radioso e iluminado, intuí que intimamente se convencia de que entre nós aconteceria o que muitas vezes acontece. Sem demora, deitei-me na cama e expliquei-lhe que vinha apenas para escutar o silêncio. Ele deitou-se ao meu lado e começou a cantarolar. Girassóis, papoilas, cravos, anémonas, flores de amendoeira, tudo, tudo ele pintou, mas nada se compara aos seus lindos lírios azuis. Pedi-lhe que se calasse, deixasse as cantorias para depois, expliquei-lhe que não tinha muito tempo, às duas horas sem falta precisava de estar de volta à minha secretária. Fechei os olhos, deitei-me de barriga para cima, as mãos sobre o peito, as pernas bem alinhadas. Esperei. Concentrada, tentando ignorar uma mola solta que fazia pressão nas minhas costas, procurei apurar os sentidos para ver se escutava um ruído, um arrastar de chinelos, a descarga do autoclismo, um telefonema, enfim, qualquer coisa. Nada, não se escutava nada, absolutamente nada. Estivemos assim, deitados lado a lado, durante algum tempo, dez, quinze minutos. Acabei por ser eu a interromper o silêncio. Se calhar, César Augusto, esses homens estão sempre a dormir., disse, recordando os mandriões do vale fértil. E não comem, não vão à casa de banho?, respondeu-me com uma leve rispidez vingativa. Aquilo era um mistério.

Continuámos deitados. Novo silêncio. Percebi que aqueles homens de certa maneira já tinham deixado de existir, porventura já não ocupavam espaço na vida dos outros, talvez se tivessem tornado invisíveis, incorpóreos, inexpressivos, viviam mortos, feitos fantasmas, espectros, sem ninguém, sem um familiar, um amigo, um conhecido. A certeza da sua solidão entristeceu-me. Pedi ao meu amigo que inventasse para eles uma vida, mas uma vida alegre, repleta de aventuras, amor e lírios azuis. César Augusto é uma criatura singular, muito generosa; para além de outros atributos, é um minucioso contador de histórias. Pensou um pouco, depois, entre risadas, foi falando calmamente. Preparei-me para o escutar: encostei a cabeça no seu peito, passei a mão pela grande cicatriz que lhe atravessa a testa e palpei-lhe as mãos à procura do mindinho torto.