2015/12/10

Cruzamento

No bairro do Armador, no cruzamento em frente da bomba da Repsol, por voltas das oito da manhã, costuma estar um homem a apontar as matrículas dos carros que por ali passam. O homem, velho e muito preto, usa botas de cordões desapertados e, esteja frio ou calor, veste sempre um casaco com capuz e forro quente. A pele do rosto é lustrosa e, de tantas horas ali passadas, imagino um cheiro de suor, urina, sujidade. Estou tão habituada a passar todos os dias pelo velho das matrículas que já pouca atenção lhe dou. A loucura só impressiona a início. Com o passar do tempo, uma pessoa habitua-se a tudo, à violência, também à loucura. O louco da rua Júlio Dinis também já não me causa estranheza. O pobre, escanzelado, muito sujo, de longas barbas imundas, é conhecido de toda a gente. A dona do café prepara-lhe o almoço. O magrinho que trabalha na farmácia e a judia da joalharia arranjam-lhe cigarros. O sapateiro, se o encontra mais sereno, fala-lhe de futebol. O cauteleiro brâmane, homem de muita prudência, recomenda-lhe calma. O louco fala sozinho, anda aos ziguezagues, delira. Muitas vezes, grita com violência, mas quem ali vive ou trabalha, no cruzamento da Júlio Dinis com a 5 de Outubro, trata-o com indiferença. Às vezes, lá de vez em quando, aparece um turista mais impressionável. Vendo o louco passar aos gritos, o turista pára de caminhar e, paralisado, fica a olhar para ele como se dissesse “Olha, vai ali um louco!”.  Sempre que isso acontece, nós - eu, a judia da joalharia, a dona do café, o magrinho da farmácia, o cauteleiro brâmane - paramos também. Não para olhar o nosso louco, mas para olhar o turista.  É a reacção do turista, espantado, amedrontado, mexendo nervosamente nos compartimentos secretos da sua fantástica mochila, que estranhamos.