2016/04/27

Caniçado

A casa do Caniçado. No portão, de mão dada à Vitória, espero que a minha mãe chegue do dispensário. Está sol, calor, a luz fere os olhos e ilumina um horizonte aberto, com poucas casas, sem árvores, animais ou gente. No caminho de terra vermelha, ao longe, vejo a silhueta de uma mulher. À medida que se aproxima, percebo que é a minha mãe. Reconheço-a por causa da blusa que veste: branca, com uns estranhos desenhos, animais de longas patas, árvores de copa azul, figuras surrealistas, desfeitas, derretidas, que, a esta distância, associo aos quadros de Dali. Certa de que é a minha mãe, largo a mão da Vitória e corro na sua direcção. Pequena, três, quatro anos, abraço as suas pernas, enterro a minha cara no seu corpo. Só quando a mulher me pega ao colo e, rindo, me entrega à Vitória, percebo que me enganei. A minha primeira memória é de desilusão e perda. Quando a minha mãe morrer, continuarei a procurá-la nos sonhos, nos objectos, nas outras mulheres. E haverá sempre amanhã.