Uma vez por mês, corto o pulso da mão esquerda e deixo escorrer o sangue mau. Assim que me vêem no meio do quintal, sentada na cadeira que foi da minha avó Felicidade, os filhos da vizinha largam as brincadeiras e espreitam pelo muro. A Micaela, pequenina, tem de se pôr em bicos de pés para me ver melhor. O Luís, o irmão, às vezes pega-a ao colo e senta-a em cima do muro. Ficam à espreita, em silêncio. Olham para mim, olham para o céu. Esperam a chegada do abutre. Há muitos pássaros na aldeia, andorinhas, cucos, gaios, até cegonhas, também há outras mulheres que cortam os pulsos, mas nunca aparecem abutres. Assim que notam a sua sombra no céu, os meninos agitam-se. “Mana, olha as asas dele!”, diz o Luís. “É tão feio…”, diz a Micaela e esconde o rosto com as pequenas mãos papudas. O abutre pousa ao meu lado. Faço-lhe uma festa na cabeça, é um velho amigo, conheço-o há muitos anos. Não perco tempo. Apesar da pele ser dura, estar tão calejada, faço sempre o corte no sítio da cicatriz antiga. Não quero outras marcas no corpo. O sangue mau, de tão espesso, escorre devagar. O abutre bebe-o. Imediatamente, essa a vantagem da sangria em relação a outros tratamentos, sinto alívio, um bem-estar que, apesar de transitório, me serena. A sangria constitui o nervo da cura, é nela que fundo toda a esperança. Quando o sangue se altera, fica claro, fluído, é tempo de parar. Livre do sangue mau, coso os bordos do corte. Faço outra festa na cabeça do abutre. Caminho na direcção do muro. Mostro o pulso aos meninos. O Luís não diz nada. Limita-se a olhar para a cicatriz. A Micaela, audaz, toca-lhe com os seus dedinhos gordos.