Às quinze horas e trinta minutos, comecei a estudar o processo do jovem professor. À medida que folheava o processo, lendo relatórios médicos e guias de tratamento, comecei a sentir vontade de fugir, as goelas estranguladas, a habitual sensação de desorientação e desperdício. Às quinze horas e trinta e quatro minutos, levantei-me. Percebi que o choro vinha descontrolado, amarinhava por dentro, em menos de um minuto, haveriam de assomar-se lágrimas aos meus olhos. Fiquei com a visão embaciada, percebi que não tinha tempo para chegar à igreja de Nossa Senhora de Fátima que é o sítio perto do trabalho onde gosto de chorar. Fico ali, na penumbra, perto do altar da Nossa Senhora do Carmo, a contar os anjos dos vitrais e a escutar o chiar dos sapatos ortopédicos das velhinhas no chão encerado. Corri à casa de banho. Tranquei-me no cubículo da retrete. Tapei o rosto com as mãos e comecei a chorar. Mordendo os lábios, sem conter os soluços. É tão bom chorar. Chorar mata a tristeza assim como a água mata a sede. Às quinze horas e quarenta minutos, senti alguém entrar na casa de banho e abrir a torneira do lavatório. Calei o choro e deixei-me estar quieta. Às quinze e quarenta e três, a mulher do outro lado, cansada de esperar, bateu à porta. Aborrecida, sorvi o ranho para dentro. É só um bocadinho!, respondi e comecei a limpar os olhos. O papel encheu-se de preto. Imaginei a minha figura. Deixei-me estar sentada na sanita a olhar o recipiente dos pensos higiénicos. A mulher que esperava foi-se embora. Saí do cubículo da retrete e olhei-me ao espelho. Há poucos suicidas na literatura contemporânea portuguesa. É uma pena. Não há boa literatura sem suicidas., disse para o reflexo. No corredor, cruzei-me com a Linda, colega do quinto piso. Gabei-lhe a cor da blusa. Ela perguntou pelas férias e pelos miúdos. Quis saber se tinha descansado. Muito, muito!, respondi, naturalmente mentido. Detesto férias, feriados, fins-de-semana. Só gosto do Natal. Comove-me o menino deitado nas palhinhas e ainda um dia hei-de fazer eggnog para a ceia. A determinada altura, eram quinze horas e cinquenta e dois minutos, a Linda começou a olhar fixamente para os meus olhos. Entrou-me uma poeira., respondi. Às dezasseis horas, sentei-me novamente à secretária. Olhei a paisagem estática que se vê da janela. Prédios feios, escritórios e hotéis, caixas do ar condicionado, nem um estendal, nem uma cortina, nem uma varanda florida. Há doze anos que olho por esta janela. Voltei a pegar no processo do jovem professor. Aos trinta anos, foi internado compulsivamente, com um diagnóstico terrível: psicose delirante crónica. Senti-me bastante aliviada por ter apenas depressão crónica. A vergonha que seria para a minha família, sobretudo, para os meus meninos, se eu tivesse uma doença assim. Não chego a ser bem louca, sou apenas, como diz o meu filho mais velho, completamente instável. Quando ele vem com essa conversa, ouvida desde pequena ao meu pai e irmãos, tenho vontade de disparatar. Mentalmente mando-o para a puta que o pariu, que é o meu insulto preferido e serve para toda a gente, mas depois, logo a seguir, lembro-me que a puta que o pariu sou eu.
(volúpia literária, o caralho.)