2016/06/22

Caril verde

Chovia quando saí do cinema. Caminhei à chuva. Entrei na loja chinesa da esquina da Av. de Berna com a Av. 5 de Outubro para comprar grampos. A dona é uma senhora amável, sorridente, o dono, um estranho homenzinho de bigode retorcido, sobrancelhas aparadas, unhas muito compridas. Todos os homens chineses com quem me cruzo têm unhas compridas. Entrei no banco, subi ao sexto piso, prendi o cabelo com os grampos. Olhando-me no espelho, desejei ser bela e jovem como a mulher do filme. Sentei-me à secretária e comecei a analisar um processo. Trabalhei concentradamente durante a tarde, tranquila, o trabalho liberta-me, esqueci o filme, o sonho do relógio sem ponteiros, o rosto de Marianne. À noite, depois de entregar os miúdos aos cuidados dos meus pais, fui jantar com duas amigas do bairro onde cresci. Convidam-me para jantares e aniversários dos filhos. Digo sempre que não. Arranjo desculpas. Desta vez resolvi ir. Sou outra mulher quando tomo a fluoxetina. Enquanto me arranjava, dei instruções a mim própria: vais colocar-te no lugar dos outros, vais beber moderadamente, um ou dois copos de vinho, vais escutar o que têm para te dizer, vais sorrir, vais abrir a boca e da tua boca sairão frases como “E os teus pais, como estão?” ou “ Está tão grande, o teu Francisco!”. Vesti uma túnica branca, bordada a missangas amarelas, que comprei em Nova Deli. No restaurante tailandês, sorrisos e conversas. Tudo corria às mil maravilhas, mas, quando uma das minhas amigas começou a falar das vantagens do ensino privado, percebi que não conseguia aguentar por muito mais tempo o fingimento da fluoxetina. A conversa enojou-me. Nunca colocaria um filho numa escola privada. Sou preconceituosa em relação a certos assuntos. Por essa altura, irritada, abandonei o meu corpo, a mesa, a conversa de merda. Ainda assim fiz um último esforço. Interrompi a minha amiga e disse: 
- O caril verde está uma delícia. 
Continuei a sorrir,  fui respondendo monossilabicamente, sim, não, pois é, talvez, e comecei a observar os restantes comensais. Gosto de olhar para os outros. Fixar um riso alarve, uma expressão contida, a mão que leva o garfo à boca. Numa mesa próxima, três homens e uma mulher falavam animadamente. Todos me pareceram felizes, bem vestidos, bronzeados, ali, no restaurante tailandês, onde sua alteza, o rei gago, gosta de ir molhar os bigodes. A mulher era irrelevante: cabelo bem penteado, rosto redondo, maquilhado, mãos arranjadas, um camiseiro aberto, os lábios retocados de botox. A harmonia do rosto, de tão monstruosa e insuflada, fez-me lembrar os retratos do Francis Bacon. Ainda assim, invejei a mulher dos lábios insuflados. Desejei estar sentada na sua cadeira, dentro do seu corpo e sobretudo dentro sua cabeça, rodeada de homens excessivamente bronzeados, ser o centro das atenções. 

Sou bastante estúpida, sei-o há muito. Não tenho critério no desejo de fuga. Durante a tarde, quis ser a bela, serena, literária Marianne que viaja na companhia do sogro para encontrar o marido. No restaurante tailandês, quis ser a mulher de lábios de botox que, numa exuberância comum, vulgar, tão ordinária, namoriscava com três homens ao mesmo tempo.