2016/06/10

Hora de jantar

Ninguém podia falar. O pai exigia silêncio. De olhos postos no televisor, comendo devagar, prestava atenção às notícias que a locutora ia apresentado. O jantar era sempre assim: o pai vendo o telejornal, os filhos comendo em silêncio, a mãe, em frenesim tardio, depois de um dia de trabalho, despachando o que houvesse a despachar para estar pronta à hora da telenovela. Ana estava bem avisada sobre a postura que devia ter durante a refeição: silêncio absoluto para não perturbar o pai e, se possível, se quisesse agradar-lhe, mostrar interesse nas notícias. Por vezes, distraía-se. Esquecida das ordens, falava com a irmã mais nova. Lúcia era habilidosa com as mãos. Para controlar a ansiedade que o silêncio imposto lhe causava, tinha o hábito de fazer dobragens com as folhas translúcidas dos guardanapos. À hora do jantar, saiam das suas mãos cravos, nenúfares, pequenas rosas.
- Que rosinha tão linda!
- Gostas?
- Ensina-me a fazer…
- Tu não és capaz, Ana!
- Sou sim!
- Tens sempre negativa a Trabalhos Manuais…
- Estúpida.
Riam-se. O pai não dizia nada quando via as filhas alegres, continuava a ver televisão, mas descaíam-lhe os cantos da boca, os olhos ficavam gelados. Carlos, o filho mais velho, chumbara já duas vezes no curso de Direito, era um desgraçado, nunca seria ninguém na vida, as raparigas, via-se bem, iam pelo mesmo caminho. Duas filhas, duas ignorantes que se deslumbravam com flores de papel em vez de se interessarem pelas notícias do mundo. A mãe, aflita, temendo que a desilusão do marido se transformasse em raiva, abria os olhos. “O vosso pai está a ver o telejornal!”, acabava por dizer. Lúcia logo esmagava a flor de papel na mão. Calava-se. Ana fingia não ouvir, mas, quando o pai por fim a mandava calar, desprezo na voz, calava-se também. Aquilo custava-lhe. Sentia então raiva, fazia por se controlar, não podia responder, a resposta poderia desencadear reacções violentas no pai. Ana, nesses instantes, assustava-se: pressentia que se tivesse ao seu alcance uma pedra, uma faca bem afiada, mataria o pai. Mexia com o garfo o arroz branco no prato. Não gostava de arroz branco, mas em casa, para além das batatas a acompanhar o peixe cozido, apenas se comia arroz, sempre branco, sempre cozido em água e sal. O pai só gostava de arroz branco. Observava os azulejos das paredes, a mãe, numa azáfama, de volta do fogão e do lava-loiças. Tudo era triste e desolador: o egoísmo do pai, a subserviência da mãe, a violência contida em cada gesto à hora de jantar.
Passados alguns anos, já Ana e Lúcia eram adolescentes, Carlos saíra de casa para viver num quarto alugado, o pai – talvez por sugestão da mãe – passou a jantar sozinho na sala. Depois de tomar banho, de robe e pijama, sentava-se na poltrona em frente da televisão. Cheirava bem, a sabonete e champô, estava limpo, tinha mãos bonitas, um cabelo espesso, muito preto. Ana sentia vontade de se sentar ao seu lado, mas não era capaz. O pai era um estranho, um homem que vivia na mais completa solidão. Antes de começar o telejornal, a mãe levava o tabuleiro à sala: um pano lavado, o arroz na quantidade exacta, uma costeleta frita, molho sobre o arroz, a acompanhar, um copo de vinho. Voltava depois à cozinha, onde, sentadas à mesa, Ana e Lúcia a esperavam para começar a jantar. Comiam em silêncio. Estavam habituadas ao silêncio. Tudo continuava a ser triste e desolador. Só o pai, concentrado nas notícias, sem ter ninguém a perturbá-lo, parecia agradado com a mudança. A sua felicidade era evidente: estava acompanhado pelo mundo e sua gente, mas livre da família.