2016/12/16

Sete escravas de ouro

Agarrou-a pelo braço e levou-a para a varanda. Foi a primeira vez que a trancou completamente nua. Teresa não reagiu, não gritou, não bateu com os punhos nas vidraças, como fazia no início, apenas encolheu o corpo para se proteger do frio.

Rui viu um pouco de televisão e depois foi deitar-se. Dormiu sossegado, não acordou para beber água nem mesmo para ir à casa-de-banho. Ao acordar teve a vaga sensação de ter tido sonhos felizes.  Talvez por isso a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a da sua mãe caminhando de mãos dadas com Ana à beira do lago. Ana era uma criança encantadora, alegre e, pelo modo como falava, um pouco belfa, a voz cheia de mimo, cativava qualquer pessoa.  Até o tio Alberto sorria quando Ana se sentava ao seu colo e lhe pedia que contasse a história do Pinto Calçudo. Só se lembrou de Teresa quando o sol, entrando pelas frestas dos estores, fez brilhar os frascos de perfume pousados na cómoda. Nua na varanda. Como teria passado a noite? Ainda não fazia muito frio, mas, durante a noite, arrefecia. Sentiu angústia por ter trancado a mulher na varanda, mas não experimentou arrependimento. Pôs-se à escuta para ver se ouvia algum ruído vindo da varanda. Nada. A casa estava quieta, silenciosa e apenas o sol, incindindo nos frascos de perfume, parecia quebrar a calma aparente que pairava sobre os objectos. Por instantes, temeu que tivesse acontecido alguma coisa  a Teresa. E se tivesse saltado da varanda? “Vou ao terraço e atiro-me cá para baixo…”, era a frase que usava sempre que discutiam. Uma frase desesperada, mas dita calmamente, cada palavra pronunciada com lentidão, como se só assim a ameaça pudesse ser encarada como real. Não suportava que Teresa a dissesse, sobretudo em frente de Ana.

Afastou os pensamentos sombrios e procurou prolongar as rotinas para adiar o momento em que abriria o trinco da varanda e encararia a mulher. Tomou banho, esfregou bem o pescoço e as costas, fez a barba com vagar, passando a lâmina duas vezes no rosto para a pele ficar macia. Preparou o pequeno-almoço. Deu comida ao gato que, mansamente, se enrolou nos seus pés. Foi espreitar a filha: Ana dormia profundamente, enrolada aos pés da cama. Quando já não tinha mais nada a tratar, entrou na sala. Afastou os cortinados. Lá fora, Teresa continuava encolhida: a cabeça encostada à banqueta onde o gato dormitava nas tardes de sol, os pés e os lábios azuis do frio. Durante a noite, arrancara as folhas das plantas e despejara sobre si a terra dos vasos. Naquela posição, coberta de terra, folhas e flores, Teresa pareceu-lhe pequena, frágil e ainda mais bela. Sentiu uma erecção e lembrou-se do verso de um poema. O ruído do trinco da porta fez com que a mulher abrisse os olhos. Levantou-se e, sem o olhar, sem nada dizer, caminhou na direcção do quarto. Ficou um rasto de terra no chão encerado da sala. O tilintar das sete escravas de ouro que Teresa usava sempre no braço esquerdo quebrou por fim o silêncio da manhã.