2010/07/19

Violante (3)

Também Violante encontrava a graça divina no nascimento daquelas crianças e, antes de completarem três meses, levava-os à igreja para serem baptizados. O padre de S. Teotónio era um homem tristonho e apagado. Trazia os cantos da boca sempre caídos. Não era dado a conversas, não fizera amigos na aldeia, escondia os olhos atrás de uns óculos que pareciam permanentemente embaciados. Passava o tempo livre na alameda de álamos que ficava ao lado da igreja, caminhando de cá para lá e de lá para cá. Dormitava muito. Corria o rumor que tinha pouca fé. Assim era. A fé fora-o abandonando ao longo da vida. Fugira-lhe pelos orifícios do corpo. Chegara aos cinquenta anos com mais dúvidas que certezas. Sabia que tinha obrigação de deixar o sacerdócio, tornar-se um homem comum, procurar um emprego, arranjar uma mulher. Fosse ele um homem íntegro e havia de assumir as suas ideias, cumprir o seu destino. Mas, aos cinquenta anos, sem família, sem habilitações para exercer um ofício, o corpo adormecido e aquela cara de carneiro mal morto, olhos molengões, beiçolas estendidas, que podia fazer? A coerência enobrece os corajosos, e ele, sabia-o bem, era cobarde. E, depois, estava tão habituado às guloseimas que as devotas lhe ofereciam por altura da Páscoa. Travessas de arroz doce, garrafinhas de licor de poejo, bolos de amêndoa sarapintados de passas de uva inchadas em aguardente. Uma delícia! Deixava-se andar. Dizia a missa, sem entusiasmo, mas com eficiência. Dava catequese aos sábados de manhã. Organizava a quermesse por altura da festa da paróquia. Era sempre brando na penitência. Por maior que fosse o pecado confessado. Não exigia muito aos habitantes de S. Teotónio e estes, de volta, não exigiam muito ao padre. Havia um equilíbrio perfeito no sinalagma daquela relação. Aquela mar morno de inércia e preguiça só era sacudido quando Violante lhe trazia um menino para baptizar. Despertava, então, daquela letargia e também ele se embevecia a admirar a beleza inocente daquelas crianças. Perdia o ar molengão, os cantos da boca, tão pingões, arrimavam, até a sotaina preta lhe assentava melhor. Consolava-o, de forma que lhe custava a explicar, livrar do pecado original criaturas tão deliciosas. Tão perfeitos, com os seus corpos cheios e firmes, pareciam pintados por mestres renascentistas. Não se cansava de os elogiar à mãe. Violante sorria, acanhada. Depois de os aspergir de água benta e de lhes deixar as nucas peganhentas com os óleos sagrados, reacendia-se no peito do padre uma acendalha de fé. Aqueles meninos aureolados, de tal perfeição e enlevo, filhos daqueles pais, humildes, tão rudes e feiosos, só podiam ser um sinal da existência de Deus. A sua beleza, de tal modo intensa, provava a transcendência do divino. Durante algum tempo, o padre era abandonado pelas dúvidas habituais e as suas palavras tornavam-se vivas. Às vezes, sorria durante as homilias e, uma vez ou outra, atrás do púlpito, um entusiasmo breve fazia-o erguer as mãos. Pouco a pouco, tudo voltava ao normal. Quando os habitantes da aldeia o viam passear muito calado na alameda de álamos sabiam que a tristeza e a melancolia se instalara de novo no seu coração e que as homilias ditas de forma arrastada, aborrecidas, voltariam em breve.