2010/09/21

Quarteto Alverquense

Apresso as rotinas matinais para não perder as conversas do quarteto alverquense. São quatro mulheres que viajam na primeira carruagem do comboio que vem de Castanheira do Ribatejo. Que seria de mim sem a animação dessas mulheres que apanham o comboio em Alverca e fazem a viagem até Entrecampos em amena cavaqueira, partilhando experiências, dando conselhos sobre a lide doméstica, roendo nas vizinhas, nas colegas de trabalho, comentando a factologia política e social?

A Maria Augusta é a deã do grupo. Tem uma neta a seu cargo a que chama menina. A menina isto, a menina aquilo, ai a minha menina, vai ela dizendo, como se a pobre criaturinha não tivesse nome. A voz sai-lhe da boca, estrondosa, aos borbotões. A Fátima é a mãe do Telmo Miguel e do Bruno. Os rapazes trabalham como seguranças num supermercado. A Fátima costuma gabar-se das tatuagens, dos piercings e da roupa de marca dos filhos. A Lurdes é a coquete. Loira, cheia de pulseiras de pechisbeque, tem um smart e já leu quatro vezes o livro da Carolina Salgado. Tais factos, o carro da moda e o gosto pela leitura, conferem-lhe certo ascendente sobre as outras. Bem vistas as coisas, é uma intelectual. A Carla, a mais nova do grupo, anda embevecida com a vida familiar. Fala constantemente do marido – o meu Rui, diz ela - e da filha. Bonita, de lábios carnudos, cheios, usa sombras prateadas, que parecem poeiras cósmicas e lhe dão um ar ligeiramente futurista. Um dia, voltava eu mais cedo para casa, apanhei a Carla no comboio da tarde com um homem. Era verão e o fresco da carruagem climatizada tornava a tarde menos penosa. A carruagem vinha deserta. A Carla sorria com os olhos ao homem e, nos silêncios, falava-lhe com o corpo todo. Naquela tarde, esqueceu o marido e a filha. Lembrou-se dela.

Conheço estas quatro mulheres há cerca de dois anos. Falam sempre ruidosamente, como se estivessem em cima de um palco. Projectam a voz para que as suas palavras se escutem de uma ponta a outra da carruagem. Esse protagonismo parece-lhes agradar. Nós, os restantes passageiros, somos um público assíduo e fiel. Hoje, depois de furar a multidão compacta - tive de empurrar a mulher da cicatriz coloidal no peito e pedir licença ao rapaz que lê sonetos numa língua cirílica - consegui instalar-me perto delas. Pus-me à escuta. A Fátima vinha aborrecida. Queixava-se da namorada do Telmo Miguel. A rapariga, pelos vistos, instalou-se lá em casa. Come, dorme, fornica e joga playstation. Chama-se Flávia. Não aborrece à Fátima que a namorada do filho durma lá em casa. Os tempos são outros e a decência é um luxo. Foi-se há muito. O que a chateia é que a rapariga não faça nada. Não levanta o prato depois de jantar. Nunca ajuda na lida da casa. Não tira sequer a loiça da máquina. Nunca lhe perguntou se quer ajuda para descascar batatas para o jantar. Desde Moscavide até Roma-Areeiro, a Fátima foi sempre a queixar-se da futura nora. Até que disse assim: “Olhem que ela nem sequer arranca os pensos higiénicos das cuecas. Sou eu que lhos tiro!”. O beicinho tremeu-lhe.

Fez-se um silêncio na carruagem. Por instantes breves, o tempo parou e os corpos dos passageiros cristalizaram. A própria Fátima se calou, tomando consciência do que dissera. A imagem da mulher, agachada sobre a tulha de roupa suja, num apartamento de Alverca, arrancando o penso encharcado de sangue menstrual das cuecas da Flávia, não comovia ninguém. Provocava, isso sim, uma náusea colectiva, de tal ordem intensa, tão profunda, arranhando as entranhas, que parecia tomar corpo, tornando-se numa massa plúmbea, fétida, visível. Nojo da Flávia, nojo do Telmo Miguel e da Fátima. Em Entrecampos, quando as portas da carruagem se abriram, todo aquele nojo escorreu para fora. A plataforma encheu-se de águas densas e castanhas, sujas de dejectos. Formaram-se pequenos charcos de putrefacção. Os passageiros tiveram de saltitar para não sujar os sapatos. Os pombos voaram para longe.