Vem atrás de mim, num passo pesado, próprio da sua raça, desde a fnac da rua de santa catarina até ao jardim da parada, um boi barrosão. Que me conhece, bufa o bicho, a menina, desculpe, não tirou o curso de filosofia em Braga, não estudou o Hegel, o existencialismo do Kierkegaard e o pessimismo do Schopenhauer. Possante, costados largos, traz um brinco de prata no lóbulo da orelha esquerda e um casaco escuro de cangalheiro, o cabedal, todo escavacado, liberta um cheiro intenso de naftalina e fumo. O barrosão nada sabe de mim, não me conhece, está-se nas tintas para o que sou, penso e sinto, é o meu corpo, as minhas pernas, a sugestão da fundura da minha vagina, o cheiro do meu suor, que o excita. As palavras com que me aborda são delicadas, procuram disfarçar o impulso sexual, o instinto predatório, a necessidade de encontrar uma fêmea apta à perpetuação da espécie. Se pudesse, não tenho dúvidas, cobria-me ali no turbilhão da baixa portuense, à vista do pedinte que toca acordeão e das mulheres que andam às compras de natal, cheias de sacos e listas, num desespero que entristece e magoa.
Subo a rua do coliseu, sempre com o barrosão na minha mira, já deixou a filosofia, agora, pergunta-me pelo nome, pede um cartão, um número de telefone. Paro a olhar a montra de um talho. Ao centro, mesmo por baixo de uma fiada de carcaças, há um tabuleiro de alumínio com quatro magníficas mãos de vaca, enormes, as patas, tão bonitas, quatro patas de casco limpo, de um branco baço, deixo-me ficar em frente da montra a olhar aquelas mãos de vaca que não parecem reais, são feitas de cera. Lembram as velas que se vendem nos tendeiros de Fátima, forma de pernas, cabeças de anjos, braços, pés, mãos, corpos humanos esquartejados com precisão, comprados por peregrinos que chegam de camioneta e comem frangos assados e laranjadas nos parques à volta do santuário. Ficam os cotos de estearina a arder em capelas sombrias para cumprir promessas antigas, maleitas que se curam, maridos andarilhos que voltam, filhos que largam o vício.
Continuo a olhar as quatro mãos de vaca, quero guardar aquele instante, umas mãos de vaca assim não me aparecem pela frente todos os dias. O barrosão, corpo suado de subir a rua, inquieta-se, já não sabe o que fazer, estranha o meu interesse na montra do talho. A menina já provou mão de vaca com grão, é uma delícia, diz por fim. A autofagia do bicho entristece-me. Ouço-o em silêncio. Linda, a pronúncia do norte.
Subo a rua do coliseu, sempre com o barrosão na minha mira, já deixou a filosofia, agora, pergunta-me pelo nome, pede um cartão, um número de telefone. Paro a olhar a montra de um talho. Ao centro, mesmo por baixo de uma fiada de carcaças, há um tabuleiro de alumínio com quatro magníficas mãos de vaca, enormes, as patas, tão bonitas, quatro patas de casco limpo, de um branco baço, deixo-me ficar em frente da montra a olhar aquelas mãos de vaca que não parecem reais, são feitas de cera. Lembram as velas que se vendem nos tendeiros de Fátima, forma de pernas, cabeças de anjos, braços, pés, mãos, corpos humanos esquartejados com precisão, comprados por peregrinos que chegam de camioneta e comem frangos assados e laranjadas nos parques à volta do santuário. Ficam os cotos de estearina a arder em capelas sombrias para cumprir promessas antigas, maleitas que se curam, maridos andarilhos que voltam, filhos que largam o vício.
Continuo a olhar as quatro mãos de vaca, quero guardar aquele instante, umas mãos de vaca assim não me aparecem pela frente todos os dias. O barrosão, corpo suado de subir a rua, inquieta-se, já não sabe o que fazer, estranha o meu interesse na montra do talho. A menina já provou mão de vaca com grão, é uma delícia, diz por fim. A autofagia do bicho entristece-me. Ouço-o em silêncio. Linda, a pronúncia do norte.