Enquanto nos esfregava com uma esponja áspera, a banheira cheia de água quente e espuma, sabonetes escorregadios, fugindo como peixes, azulejos embaciados, a minha mãe elogiava sempre as nossas pernas. Todas as semanas era a mesma conversa, graças a deus que vocês não têm pernas de indiana, ia dizendo, as mulheres da terra do vosso pai têm pernas de alicate, muito finas, parecem umas desgraçadinhas com poliomielite. Ria mansamente, a velhaca.
De joelhos no chão, mangas arregaçadas, a minha mãe esfregava nesse banho de imersão de domingo as partes do corpo que ficavam esquecidas durante os duches da semana, pés, costas, orelhas, umbigo. Escutava-a e percebia que havia na sua voz uma pontinha de vingança, dava-lhe gozo desdenhar assim, ainda que indirectamente, as mulheres da família do meu pai, cunhadas, irmãs, sobrinhas, primas, sobretudo a sogra, feia, de lábios finos, cozidos, autoritária, a única mulher que o meu pai abertamente admirava: sozinha, que um marido fraco, dado ao queixume, à preguiça e à bebida, é como se não existisse, não tem serventia de espécie alguma, cuidara das propriedades da família e educara cinco filhos. Naquele tempo, não duvidava do conhecimento da minha mãe. Se ela dizia que as indianas eram assim, feiotas, logo eu as imaginava uns estafermos, magras, enfezadas, sem curvas, narizes de papagaio, cabelos oleosos, por baixo dos saris, pernas fininhas, tortas, arqueadas, deformadas.
Suspirava de alívio por não ter herdado as características físicas da minha avó paterna, Maria Aninhas Valadares, mas estranhava a importância que a minha mãe dava ao torneado das nossas pernas. Vivíamos num mundo de mulheres recentemente emancipadas - na certeza da legalidade escrita as mulheres eram iguais aos homens. Proibia-se a discriminação. As mulheres tinham exactamente os mesmos direitos que os homens. Bastava-lhes o seu trabalho, o seu valor e competência para serem reconhecidas. As mulheres haviam de ser amadas apenas pelas suas ideias, pela firmeza do seu carácter, pela sua sensibilidade, enfim, por essas coisas. A conversa da minha mãe, dando importância ao corpo, antecipando um tempo de volúpia e desejo, ofendia, e de que maneira, o meu precoce feminismo, era um retrocesso intolerável, um sinal de atavismo e ignorância. Havia, porém, muito acerto nas suas palavras. O corpo é uma arma e uma mulher deve usá-lo em todas as ocasiões: fazer pontaria, olhar pela mira telescópica e puxar o gatilho sem misericórdia ou piedade.
De joelhos no chão, mangas arregaçadas, a minha mãe esfregava nesse banho de imersão de domingo as partes do corpo que ficavam esquecidas durante os duches da semana, pés, costas, orelhas, umbigo. Escutava-a e percebia que havia na sua voz uma pontinha de vingança, dava-lhe gozo desdenhar assim, ainda que indirectamente, as mulheres da família do meu pai, cunhadas, irmãs, sobrinhas, primas, sobretudo a sogra, feia, de lábios finos, cozidos, autoritária, a única mulher que o meu pai abertamente admirava: sozinha, que um marido fraco, dado ao queixume, à preguiça e à bebida, é como se não existisse, não tem serventia de espécie alguma, cuidara das propriedades da família e educara cinco filhos. Naquele tempo, não duvidava do conhecimento da minha mãe. Se ela dizia que as indianas eram assim, feiotas, logo eu as imaginava uns estafermos, magras, enfezadas, sem curvas, narizes de papagaio, cabelos oleosos, por baixo dos saris, pernas fininhas, tortas, arqueadas, deformadas.
Suspirava de alívio por não ter herdado as características físicas da minha avó paterna, Maria Aninhas Valadares, mas estranhava a importância que a minha mãe dava ao torneado das nossas pernas. Vivíamos num mundo de mulheres recentemente emancipadas - na certeza da legalidade escrita as mulheres eram iguais aos homens. Proibia-se a discriminação. As mulheres tinham exactamente os mesmos direitos que os homens. Bastava-lhes o seu trabalho, o seu valor e competência para serem reconhecidas. As mulheres haviam de ser amadas apenas pelas suas ideias, pela firmeza do seu carácter, pela sua sensibilidade, enfim, por essas coisas. A conversa da minha mãe, dando importância ao corpo, antecipando um tempo de volúpia e desejo, ofendia, e de que maneira, o meu precoce feminismo, era um retrocesso intolerável, um sinal de atavismo e ignorância. Havia, porém, muito acerto nas suas palavras. O corpo é uma arma e uma mulher deve usá-lo em todas as ocasiões: fazer pontaria, olhar pela mira telescópica e puxar o gatilho sem misericórdia ou piedade.