2012/02/03

Manatim

Estava ao balcão da cafetaria, a comer qualquer coisa, quando me lembrei da Rafaela, colega de outros tempos, paquidérmica, colossal e mastodôntica, quando a conheci andava de pernas e braços muito abertos, membros como barbatanas, fazia lembrar uma morsa, uma baleia, uma manatim do amazonas, enfim, era um ser imenso e aquático, andava de boca sempre aberta porque lhe custava muito a respirar; em dada altura, anunciou que ia colocar uma banda gástrica, questão de vida ou morte, toda a gente do sexto piso o soube, um alarido, passava horas ao telefone a falar com as amigas, a explicar todos os pormenores da intervenção que lhe estreitaria o estômago, horas e horas naquilo, não sei como era capaz, custa-me tanto falar. Finalmente chegou o dia, meteu baixa, enfiaram-lhe a anilha no bucho, acabando a baixa voltou, queixosa, dorida, com uma catrefada de comprimidos para tomar.

Meia dúzia de dias depois, começou a encolher, a mirrar, parecia milagre, feitiço, bruxedo antigo, mas dos bons, emagreceu, emagreceu, perdia peso às golfadas. Alta, meia mulata, sem as banhas do costume, tornou-se numa morena vistosa, assim que chegou ao ponto tratou de cumprir o seu destino: arranjou um amante. Era um homem mais velho, controlador de tráfego aéreo aposentado, que a esperava, pelo menos duas vezes por semana, à porta do serviço, na companhia de um cão fuçanhudo, cheio de baba. Mulher pouco silenciosa, tudo nela chocalhava e badalava, assim que o aposentado lhe ligava, dizia vou comer qualquer coisa à cafetaria, levantava-se e soltava uma risada maliciosa. O sexto piso punha-se à janela a espreitar aquela indecência, quem a viu e quem a vê, ainda há meia dúzia de meses era uma desgraçada, gorda, feia, um manatim do amazonas, agora, meio postiça, é certo, mas bem boa, com amante posto na Elias Garcia e tudo.

O marido da Rafaela também trabalhava no sexto piso, funcionário zeloso, obediente, coleccionador compulsivo. Soube da traição e calou, nunca ninguém lhe ouviu um queixume, um reparo, nada, nadinha, enfim, uma jóia de homem, homens assim, mansos e resignados, são muito difíceis de encontrar. Pouco depois, a Rafaela pediu o divórcio: ficou com a carrinha e um apartamento, o marido ficou com o filho e as colecções de bules e isqueiros. Um ano mais tarde, mudou de direcção e abateu-se um silêncio muito triste no sexto piso. A última vez que a vi foi precisamente ali, ao balcão da cafetaria, vinha na companhia do controlador de tráfego aéreo aposentado, fez-me uma festa, gabei-lhe o tom das unhas, explicou-me que era um dos violetas hipnóticos da dior, o orchid, mais luminoso, irisado; despedimo-nos com dois beijinhos. Invejei-lhe tanta coisa. À saída o cão fuçanhudo, esperava o dono, olhando a montra de húngaros, bolachas francesas, carpinetes de amêndoa e raivas de fruta.

(devia escrever; ao invés, vou dançar e beber.)