2012/04/29

Aninhas e a festa de Natal



Frequentava um jardim-de-infância perto do hospital onde a mãe trabalhava. As salas eram acolhedoras, o refeitório muito grande, o dormitório cheio de catres azuis onde as educadoras obrigavam os meninos a dormir a sesta. No Natal e na Páscoa organizava-se sempre uma festa. Os meninos representavam e cantavam canções para os pais vestidos de abelhas, passarinhos, flores. Naquele tempo, virgem de máquinas digitais, enquanto os filhos actuavam, os pais olhavam-nos sem se preocuparem em captar o momento daquilo a que não assistiam. Aplaudiam no fim. Após o espectáculo, era sempre servido um lanche partilhado no refeitório. As empregadas colocavam nas mesas corridas pilhas de pães-de-leite, bolos, travessas de coscorões ou azevias, se fosse Natal, folares de ovos envernizados, se fosse Páscoa, pratinhos de rissóis de camarão e croquetes de carne, bolinhos secos, húngaros, bolacha francesa, fidalguinhos de braga, torcidos de anis. Havia laranjada para os meninos e garrafas de vinho do Porto para os pais. Aninhas, todos os anos, corria pelo corredor para ver o que a mãe trouxera para o lanche. Se o bolo fosse bonito, encontrava em tal facto a certeza de um futuro radioso cheio de felicidade e alegria.

Lembra-se de um Natal em que, muito ansiosa, acabada a festa, quis saber o que a mãe trouxera para a lanche. Que sossegasse, explicou a mãe enquanto lhe tirava uma saia de papel frisado, saíra do hospital e passara pela Tarantela. Comprara um bolo muito bonito. Correu as mesas do refeitório à procura. Havia troncos de natal e lampreias de ovos, ciclóstomos com corpo de doçura. Quando finalmente a mãe lhe mostrou o bolo, suspirou de alívio. Era um bolo de pastelaria, redondo, pouco mais de um quilo, um pão-de-ló, recheado e coberto de doce de ovos, em cima o pasteleiro colocara dois cisnes de açúcar, um branco, outro azulado, nadavam num lago espelhado de glace. Ali estava um bolo que era uma beleza! Ao lado, um prato de papelão com uma fiada de pastéis de bacalhau. Do outro lado, um pratinho com fatias de bolo de iogurte. Sentiu pena dos meninos cujos pais traziam pastéis de bacalhau e fatias de bolo simples para o lanche partilhado. Tão bonito mãe, disse-lhe em jeito de agradecimento. Depois foi brincar para o recreio onde havia charcos da chuva, bandos de patos e uma torre de ferro onde prendia as pernas e, de cabeça para baixo, deixava o corpo balançar.

Os pais ficaram no refeitório conversando com as educadoras. Quando começou a chover, uma auxiliar chamou os meninos para dentro. Aninhas vinha transpirada da brincadeira. O refeitório estava quase vazio, a maior parte dos pais decidira partir não fosse o tempo piorar. Uma empregada varria já o chão com uma vassoura. Em cima das mesas corridas, os despojos do lanche começavam a ser retirados para a copa. Foi então que Aninhas reparou que o bolo, cuja beleza e sofisticação tanto apreciara, continuava ali, cor de marmelada, os cisnes nadando num lago de águas açucaradas. Ninguém lhe tocara. O prato de pastéis de bacalhau estava vazio e sobrava apenas uma fatia de bolo de iogurte. Escondeu o rosto no corpo da mãe que falava com a educadora, sentiu a fazenda áspera da sua saia e começou a chorar. Escutou fragmentos de conversa. “…desde a morte do irmão… sim…sabe não é fácil para uma criança tão pequena…” Aninhas sabia do que falavam. Depois de uma gravidez que lhe parecera demasiado longa, a mãe trouxera para casa um bebé quase morto. Estava enterrado num cemitério longe de casa. A mãe e a educadora convenciam-se de que o seu choro era causado pela morte desse estranho ser, morto, tão morto, feio, tão feio, que nunca chegou a ganhar vida. Esteve uma semana em casa, enfiado com a mãe no quarto, de vez em quando, escutava-se um piar de bicho doente, saiu aninhado num caixãozinho de madeira de pinho. A mãe chorou muito a sua morte. O pai não. Um filho doente, incapaz, deficiente, mais do que uma sina pesada, era sinal de fracasso. Estavam, porém, enganadas. Nem a morte do recém-nascido lhe causava tristeza nem as idas ao cemitério aos domingos a atormentavam. Havia um vendedor de castanhas junto ao portão e arranjos florais tão lindos sobre a brancura marmórea das campas. Naquele instante, porém, agarrada à saia da mãe, Aninhas agradeceu ao irmão a sua morte; podia, assim, disfarçar o seu choro egoísta nascido da certeza de um futuro escuro, sem felicidade ou alegria.