2016/03/09

Aquela cidade

Os prédios eram velhos e feios, de varandas de ferro enferrujado e paredes estaladas, cobertas de manchas de salitre, nas ruas passeavam homens que cuspiam para o chão e matilhas de cães que pareciam largar doenças em toda a parte. Nas arcadas dos edifícios, os mendigos, em singular vagar, mostravam a sua vagabundagem, triste e desoladora. Um bafo de urina e lixo libertava-se dos passeios. Mesmo assim gostei daquela cidade: as janelas tinham floreiras com petúnias, malvas e gerânios, as alamedas de acácias largavam uma sombra perfumada que atenuava o cheiro dos passeios e, para aliviar do calor, em qualquer esquina se vendiam talhadas de melancia, quadrados de coco fresco e figos da Índia descascados. Mas foi a noite que me maravilhou. O seu início, além de brandas aragens, trazia às ruas da cidade uma aceleração de corpos e movimentos: luzes explodiam por todos os cantos e as conversas dos transeuntes misturavam-se com os gritos dos milhafres que, descansando nas copas dos dragoeiros, debicavam frutos maduros que pingavam mel nas ruas. O início da noite não marcava o fim do dia. O maior encanto daquela cidade estava no crepúsculo, naquela tardia confusão que sempre esconde os escombros de que são feitas as cidades do sul. Visitei as muralhas reais, os banhos árabes e a catedral de Nossa Senhora da Anunciação. Subi ao monte para tirar fotografias aos macaquinhos berberes. Bichos sinistros: sentados na berma da estrada, aparentaram uma calma absurda quando o autocarro estacionou; continuaram a descascar favas de alfarrobas e assistiram serenos às caretas dos turistas. Também visitei a grande mesquita. Gigantes ninhos de vespas pendiam da cúpula da entrada principal, o grande minarete erguia-se aos céus, os altifalantes faziam ecoar as chamadas para a oração. O guia explicou que o exterior era revestido com mosaicos azuis, sobras trazidas da grande mesquita de Istambul, e que a porta de acesso estava decorada com passagens corânicas. Já se passaram muitos anos, mas ainda recordo que senti uma felicidade libertadora por estar ali, naquele lugar tão distante do meu apartamento de três assoalhadas e marquises de alumínio, ouvindo falar de gelosias de madeira com incrustações de marfim e placas de urnas de mármore trabalhado. Como se pressentisse a irrepetibilidade daquele momento, escutei com atenção as explicações do guia e tentei armazenar o máximo de informação possível. Mas os circuitos da memória não são facilmente controláveis, quanto mais se pretende reter o conhecimento fundamental da história, datas e factos, mais se esquece a narrativa do mundo; assimila-se o detalhe, o supérfluo e o irrisório. Apesar da atenção com que escutei o guia, algumas semanas mais tarde, de volta à rotina, ao meu apartamento de três assoalhadas e marquises de alumínio, já não era capaz de identificar qualquer particularidade arquitectónica da mesquita maior daquela cidade ou sequer referir um episódio marcante da sua história. Lembrava-me apenas dos prédios feios, dos homens cuspindo para o chão, das matilhas de cães, de uma mulher descalça, vestida de trapos, a caminhar por uma alameda perfumada.