2016/03/04

Salva de prata

Mal entrou em casa, notou um cheiro a cânfora revelador da presença de Ester. Alberto, vendo-a franzir os sobrolhos, apressou-se a explicar que a mãe viera dar uma ajuda. Trouxera a Fátima logo de manhã que, sob as suas indicações, passara o dia a limpar o pó e a aspirar. Também lavara a loiça acumulada no lava-loiça e fizera a cama com os lençóis de linho que estavam guardados na gaveta da roupa melhor. Clara olhou em redor: a casa estava na realidade bem limpa. Fátima, mãos calejadas, a polpa dos dedos sempre inchada dos detergentes, apesar das constantes queixas de Ester, cumpria os seus deveres com máxima eficácia: tinha gosto em ver uma casa bem limpa, mesmo que não fosse sua, o cansaço depois de um dia de trabalho era compensado pela satisfação que sentia ao ver o brilho de um chão bem encerado. Pareceu-lhe que, mais do que arrumada, a casa estava diferente. Um olhar atento permitiu notar algumas alterações que a sogra fizera durante a sua ausência: escolhera um naperão de linha fina para a mesa da sala de estar e a boneca que costumava guardar dentro da cristaleira estava agora posta num recanto do móvel da entrada. Em cima do aparador, em vez da terrina de loiça, colocara a pesada salva de prata que o tio António lhes ofereceu como prenda de casamento. Clara não fez nenhum comentário, mas a lembrança do tio deixou-a irritada. O tio, próspero e sem descendência, vivia sozinho no bairro novo que começava a ser construído perto do aeroporto. Tinha um apartamento amplo, várias divisões, a cozinha integralmente equipada com electrodomésticos alemães. Toda a família de Alberto, irmãos, cunhadas, sobrinhos, lhe prestava vassalagem com o intuito de levar o maior quinhão da herança. Sobrinhos e cunhadas rivalizavam entre si para ser o centro das suas atenções: convidavam-no para padrinho das crianças que iam nascendo e, nos dias de festa, consoada, domingo de Páscoa, aniversários, insistiam em que se sentasse à cabeceira da mesa. Clara não gostava do homem. O velho era sempre amável quando a encontrava, perguntava-lhe pela família, queria saber novidades dos Cardoso da Mata, conhecia-os bem, tinha-os em grande consideração por causa do êxito dos seus negócios. Mas, enquanto lhe falava, com uma vertigem de volúpia que se notava no modo como a fitava, pousava-lhe a mão na cara, nas pernas, às vezes até nas nádegas. Clara sentia nojo daquele homem, mais ainda da vassalagem que a família de Alberto lhe prestava. Mantinha por isso a salva de prata no louceiro, guardada no estojo de veludo vermelho, bem longe da sua vista.
- Muito obrigada, D. Ester, não precisava de se incomodar. - Disse Clara e sentiu-se aliviada por ter vestido ao menino o cueiro que a sogra insistira que usasse quando saísse da maternidade. 
- Vim conhecer o meu neto. - Respondeu Ester.
Abeirou-se da alcofa num passo firme; os seus saltos altos até na alcatifa da sala se faziam ouvir. O menino estava coberto com uma mantinha e trazia uma touca que lhe escondia o rosto. Ester destapou-o. O menino abriu a boca num bocejo prolongado e, com os seus olhos de cílios revirados, pareceu fixar a avó. Apanhada de surpresa, não esperava uma criança tão bonita, Ester emudeceu por instantes. 
- Tão bonito! Parece um anjo barroco… – Acabou por dizer e abandonou a habitual secura para largar um sorriso rasgado. Sentia-se feliz, isso mesmo se notava no semblante e no modo como os seus lábios, geralmente contraídos, repentinamente relaxaram: não só o primeiro neto nascera homem como era encantador. Como fora Clara capaz de dar à luz uma criança assim? 
Clara sentou-se numa cadeira. Detestava Ester, como a detestava, não suportava a altivez, o corpo seco, o cheiro a cânfora. Porém, naquele instante, sentia-se grata por a sogra ser capaz de mostrar alegria pelo nascimento do filho. Que alguém sentisse amor àquela criança e fosse capaz de o mostrar. Alberto, o seu Alberto, era totalmente incompetente para demonstrar afecto. Fora visitá-la à maternidade logo no primeiro dia, chegara com um ramo de rosas aninhadas numa nuvem fofa de vivaz, mas não fora capaz de lho oferecer. Depois de fazer uma festa ao menino com a ponta dos dedos, pousara o ramo aos pés da cama e ali o deixara como se fosse outra coisa qualquer. Parecia guardar em relação ao filho uma distância cerimoniosa. Clara teve a certeza de que essa distância se manteria para o resto da vida. Quanto a si própria, sentia-se imune ao amor que todas as mulheres dizem sentir assim que vislumbram os filhos acabados de nascer. O menino nascera há três dias e ela  sem sentir nada. Absolutamente nada. Encarava aquela criança apenas com estranheza. 

Ester ficou até tarde. Obrigou Clara a comer uma sopa cheia de talos, assegurando que os caules fibrosos da couve lombarda ajudavam a subida do leite. Mexendo no colar de contas jaspeadas, passou o tempo a fazer recomendações. Clara escutou-a sem a docilidade que habitualmente fingia, mas com obediência. Volta e meia, fixava o olhar na salva de prata, certa de que na véspera Ester inspeccionara o apartamento, vasculhando gavetas e armários para se inteirar da sua capacidade de organização. Passava já das onze horas quando a sogra se foi embora. Mal saiu, antes de mudar a fralda do filho, chorava o menino na alcofa, Clara voltou a arrumar a salva de prata dentro do louceiro.