2011/05/30

Família

Deixou cá a minha mãe, muito lacrimosa, preocupada com os medicamentos que não tomará e com as restrições alimentares que não cumprirá. Com a desculpa do problema das partilhas que urge resolver, meteu-se no avião e voltou à Índia. Levou muitas garrafas de uisqui e vinho do porto na bagagem que, desconfio, hão-de servir para subornar funcionários judiciais subalternos. Só regressará daqui a dois meses. Vai dando notícias pelo skype. Ontem, contou, foi à praia com a tia Maria, a Fátima, a Melinda e as meninas da casa. A tia Maria é a matriarca da casa de Maina e tem seis netos. Cinco, para seu desespero, enorme frustração, são raparigas. Cinco dotes, cinco casamentos que terão de ser por si planeados. Não é nada fácil encontrar cinco noivos católicos, de famílias brâmanes, com formação superior. É a conjugação destes factores - religião, casta, formação académica - que torna a procura tão difícil. Imagino. Na praia, a tia Maria, a filha e a nora, sentaram-se vestidas, debaixo de um enorme guarda-sol. O sol é inimigo, não pelas maleitas e degenerescências que provoca, mas pela escuridão ordinária que deixa no corpo e é coisa das castas inferiores. As meninas, Lara (a delicada), Ellaine (a bela), Rhia (a inquieta), Lhea (a invejosa), molharam-se até aos joelhos, gozando o mar enquanto lhes é permitido mostrar o corpo. Mais meia dúzia de anos, e, como as suas mães, terão de ficar vestidas debaixo do guarda-sol. Se quiserem tomar banho, terão de o fazer vestidas, a ganga inchando, uma armadura de chumbo selando-lhes o corpo. A nudez será privilégio do leito conjugal. Os seus corpos serão propriedade dos maridos engenheiros, médicos, advogados, farmacêuticos, católicos e brâmanes, assim seja a tia Maria capaz de as bem casar.

2011/05/27

Roda Viva

2011/05/26

Arma

Vesti um vestido branco, justo, de bom corte, e calcei umas sandálias de salto alto. No comboio, na rua, nos corredores do edifício, no tribunal, no portão da escola, senti olhares pousados em mim. Uma morena vestida de branco dá sempre nas vistas. Um advogado, magrinho, olhos aguados, cabelo ralo, de palavra fácil, apresentou-se com um galanteio. É um prazer trabalhar com uma colega tão bonita, explicou e sentou-se ao meu lado. Durante o julgamento deixei a toga aberta para que pudesse apreciar uma nesga das minhas pernas cruzadas. No final, quando despi a toga, senti que os quarenta aprendizes de polícia que assistiam ao julgamento me olharam como fêmea. O juiz foi cortês na despedida e, pareceu-me, se pudesse, teria lambido o meu braço. Acabei o dia, enfiada num pijama puído, a fumar no estendal, com a certeza de que não há nada melhor do que nos quererem pelo nosso corpo. O corpo é uma arma.

Bifidus activo

Rafaela acordou cedo. Com um passo pesado dirigiu-se à casa de banho. Mal acendeu a luz, os bichinhos que se alimentam da escuridão, esgueiraram-se pelas frinchas do rodapé. Ainda tentou esmagar um com o seu pé paquidérmico, mas não consegiu. Sentou-se na sanita de olhos fechados e boca aberta. Sornou baixinho enquanto um jacto de mijo amarelo, morno, afogou os seus sonhos nocturnos. O ruído do filho a abrir as gavetas da cómoda fê-la despertar. Enfiou-se na cabine do duche e lavou-se com um gel de banho cujo aroma era anunciado na televisão como sendo exótico e oriental. Era o cheiro das cerejeiras do Japão que o anúncio prometia. Rafaela não resistia à poesia da publicidade. Por mais que o marido a incitasse a comprar marcas brancas, enchia sempre o carrinho do supermercado com os produtos mais caros que a televisão aconselhava. Dos cereais de fibra com frutos secos aos toalhetes hidratantes para limpar o rabo, das águas minerais com sabores a fruta às bolachas maria com antioxidantes, a sua despensa era um regalo para os publicitários, técnicos de vendas, especialistas em promoções e talões de desconto. Rafaela era um alvo fácil porque, como se costuma dizer, era burra que nem uma porta. Muitas vezes imaginava-se a ser abordada na rua para falar das propriedades do último iogurte com bifidus activo. Havia de falar com segurança das melhorias que notara no trânsito intestinal e também no desaparecimento da sensação de inchamento. Depois, enfiaria uma colher de iogurte pelas goelas abaixo e faria um sorriso encantador.

2011/05/25

Dimokransa



1) Pedro Lomba; 2) Luís Osório; 3)Nuno Costa Santos; 4) Mayra Andrade; 5) Mónica Marques. De Lisboa a Vila Nova de Famalicão são muitas horas a conduzir. Entretenho-me a fazer listas. Listas pequeninas.

Sansão (2)

Sento-me na cadeira. A menina coloca-me um resguardo preto gigante e, por cima, uma toalha cor-de-salmão. Lava-me a cabeça. Com as pontas dos dedos, executa movimentos circulares. Sinto-me nua, exposta, assim, sentada, de cabeça inclinada para trás, com uma mulher jovem a massajar-me a nuca. Há qualquer coisa neste gesto. Não me incomoda escancarar-me numa consulta de ginecologia. Abrir as pernas, sentir uma dedeira em latex, gelada, hirta, a percorrer-me por dentro. É um gesto asséptico e inócuo. Já a lavagem do cabelo sugere-me pensamentos impudicos e secretos. Quando termina a tarefa, a menina que lava as cabeças enrola o turco. Mal me sento, tiro a toalha e começo a secar o cabelo. Volto a olhar-me no espelho. Molhado, o cabelo torna-se ainda mais comprido. Pela primeira vez, consigo fazer uma trança, uma trança grossa, como se fosse a crina de um cavalo. Sempre gostei de penteados fora de moda, que ninguém usa, a não ser as velhas e as inadequadas. Gosto de tranças e de carrapitos, espirais de cabelo cheias de ganchos e elásticos, uma redezinha transparente por cima.


O cabeleireiro chega, por fim. Conheço-o. Não é a primeira vez que me corta o cabelo. Vejo-o muitas vezes, à porta do salão, no intervalo entre dois cortes, a fumar cigarros. Acho-o triste. Nunca o vi sorrir. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Depois de me cumprimentar pergunta, com um sumiço de voz, como quero o cabelo. “Curto, muito curto”. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Das duas uma. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e começar de novo, tornando-se numa outra pessoa, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Ele senta-se num banco alto, com rodas, e engole uma pergunta qualquer que estava prestes a fugir-lhe da boca. Começa a cortar enquanto cantarola baixinho uma canção. Tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga.

Sansão (1)

Sinto, de imediato, o cheiro enjoativo das tintas, dos champos, das ceras, dos vernizes, dos cremes-amaciadores, das máscaras capilares. Está quase vazio. Há apenas duas mulheres. Uma está sentada lá atrás e lava a cabeça. A outra está sentada em frente dos espelhos ovais. Uma rapariga de cabelo vermelho seca-lhe o cabelo. A mulher é velha. Usa um fato cor de cereja e uns sapatos rasos de pala. Pintou o cabelo de cinzento, com matizes azulados. Nunca percebi o que leva as mulheres velhas, quase mortas, a pintar o cabelo de azul, roxo, grená, cor-de-rosa. “Quero cortar o cabelo”, digo à rapariga que está na recepção. “Tem preferência por alguém?”, pergunta-me, enquanto fecha um livro de capa azulada que fala de anjos e demónios. Digo que não com um gesto. Indica-me uma cadeira. Dispo o casaco. Tiro os brincos. Retiro os inúmeros ganchos e elásticos que me prendem o cabelo. Enquanto me solto, olho-me. O meu cabelo está comprido, muito comprido, nunca o tive assim. É um cabelo forte e crespo. Tem uma ondulação indefinida que sempre detestei. Desde pequenina que o gabam. Por ser forte. Pela cor que tem. Piche, pez, breu, noite, alcatrão, escuridão, negrume.

Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates com frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo.

2011/05/20

Storia Storia

Calor de Agosto

Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento, escorrendo pelas paredes, metendo-se dentro das loiças do armário, espojando-se nos sofás, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a raiva não tivesse ardido como ardeu.

Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em silêncio e, sem se dar conta, encontrou alguma beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro, por causa do choro do menino, que tinha muitas cólicas, mas, sobretudo, por causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali, na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém, explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.

(Esta frase, lida num jornal, não me larga. Acho que nunca me largará.)

2011/05/18

Músculos

O grande romancista americano pesa que se farta. Hão-de os meus bicípites e tricípites braquiais andar mais inchados tal é o esforço matinal que faço para levar o saco do ginásio, o taparuere com as sobras do jantar, nos dias de aguaceiro, o chapéu de chuva e, debaixo do braço, aninhado, o grande romancista americano. Vale a pena o esforço porque o grande romancista escreve como poucos sobre o quotidiano, com enganadora leveza, como se fosse o quotidiano coisa de somenos, mas, de repente, sem que se espere, é incisivo e brutal. E depois, muito importante, sabe escrever sobre sexo. Trata o tema com habilidade que é coisa que a maior parte dos escritores não consegue fazer. Lembro, por exemplo, o Gonçalo M. Tavares e a forma asséptica, fria, gelada, como descreve o acto sexual. Gostando de o ler, tenho um certo horror ao homem quando o imagino na cama com uma mulher. Não há grande poesia na forma como o Jonathan Frazen escreve sobre sexo. Há, sobretudo, sinceridade. Dispenso a conversa das fezes feitas em chocolate que nunca me deu para devaneios e taras escatológicas. Mas ler sobre um homem que se deita sobre o sexo de uma mulher, esmagando-o com o rosto, para depois o escavar, como se dela se quisesse encher é um consolo na minha rotina. Leio-o e, instantaneamente, sinto os meus músculos adutores contraindo-se, contraindo-se, para morder o vazio.

2011/05/17

Bavaroise

Certa manhã, ninguém esperava, chegaram ao bairro camarário três camionetas de uma empresa de construção civil. Armaram-se rapidamente os andaimes, foram amarinhando pelas paredes acima como ervas daninhas, serpenteando em espirais, endemoninhadas. Assim que os prédios ficaram cobertos com uma talagarça de escoras e plataformas suspensas, o nº 1 do bairro camarário, edifício igual aos restantes que compunham o aglomerado, bloco maciço, quadrangular, de seis andares, três apartamentos de dois quartos por cada piso, começou a ser pintado. Um exército, pequeno e ordenado, de homens vestidos com fatos macaco azul petróleo, tratou de tudo com brio e profissionalismo. Lavaram as fachadas do edifício com máquinas de alta pressão. Com escovas de aço limparam manchas antigas de humidade e musgo. Taparam frestas, fissuras, rachaduras. No dia seguinte, quando voltaram, com trinchas e rolos gigantes, começaram a aplicar a primeira demão de uma tinta betuminosa, muito cremosa e espessa que, às crianças mais pequenas que por ali andavam, fazia lembrar mousses, bavaroises, sorvetes, outras doçuras a que não estavam acostumados, mas conheciam das rubricas culinárias dos programas de televisão.

2011/05/16

Alice

2011/05/13

Bia e o mar (2)

Correu, pois, a menina à mãe que estava a fazer uma sopa de tomate para o almoço. Já fizera o refogado de tomate, cebola, alho. Já fritara o toucinho. Já lhe juntara água para fazer o caldo. Estava naquele momento a escalfar os ovos. A entrada repentina da Bia na cozinha, aos gritos, pedindo-lhe para ir à praia, posso ir, não posso?, posso?, deixe lá!, fê-la bater os ovos com mais força na borda do tacho, abriram-se duas gemas que se derramaram em fios. Acabou por ceder perante a insistência da filha. Apareceu-me à porta, muito encolhida, molengona, como costume, vestida de preto, a perguntar se a companhia da Bia não incomodava...

Chegámos à praia devia ser quase quatro horas. É uma praia pequenina. O areal estende-se entre duas arribas. É uma praia de rochas, algas, de caranguejos pretos espojados ao sol, onde há sempre barcos de carga na linha do horizonte e se vê, ao longe, o casario de Sines e as chaminés da central eléctrica. Fica perto da rotunda onde a prostituta anã, na torreira do sol, aguarda a chegada dos velhos de boina que a levam para o pinhal e a deitam na caruma. Reparei que a Bia se deixou estar, durante muito tempo, a olhar o mar. Abeirei-me dela. Explicou, então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que era a primeira vez que estava perto do mar. Já o vira de passagem, da estrada, quando fora a um casamento a Vila Nova, mas nunca estivera assim tão pertinho. Perante a minha surpresa, tentou justificar. O meu pai trabalha na oficina a semana toda e, ao domingo, gosta de jogar às cartas no café. A minha mãe não gosta da praia. O egoísmo dos pais da Bia aborreceu-me. De que serve ter um filho e não lhe mostrar o mar? Ou a noite? A aldeia fica a vinte quilómetros da costa e a Bia, nos seus dez anos, nunca vira o mar. A mãe nunca largou o parapeito da janela, o pai nunca largou a oficina, o irmão nunca despiu a farda para a levarem a ver o mar. Olhei a Bia com admiração e uma pontinha de inveja porque, ao contrário de mim, terá memória do momento mágico em que tocou no mar. Ficou a tarde toda dentro de água e eu de vigia com medo de tanto afoitamento. Só saiu para comer a sandes de presunto que a mãe lhe mandou para o lanche. Comeu-a a fugir, a tiritar de frio. Depois, voltou a enfiar-se na água, como se o mar lhe pudesse fugir, como se fosse coisa passageira, um acidente na sua vida.

(a Bia gostou do mar e o mar, tenho a certeza, gostou muito da Bia.)

2011/05/11

Bia e o mar (1)

É a companhia da minha filha na aldeia. Têm a mesma idade, mas a Bia é robusta e grande. Andam sempre aos segredinhos, gostam de brincar às modelos e às secretárias, fingindo que são adultas, iniciando-se na coreografia de gestos forçados, fazendo beicinho, compondo a voz. O ano passado, andavam elas entretidas a experimentar sapatos velhos, perguntei à Bia se queria ir connosco à praia. A cara, redonda e sadia, de olhos claros, iluminou-se e correu a pedir autorização à mãe, a Maria da Luz, que é da minha idade, mas tem já dois filhos homens. Um deles é militar, esteve numa missão no Iraque e é assim uma espécie de herói da aldeia por ter estado naquela lonjura de areias, ruínas e camelos. A Maria da Luz também tem os olhos claros, mas é feia e desleixada. Usa sempre o cabelo oleoso e faltam-lhe vários dentes. É costureira, mas sem préstimo ou engenho, que a preguiça, tomando-lhe conta do corpo, a impede de aceitar até os trabalhos mais simples: chulear uma bainha ou substituir um fecho. A Maria da Luz gosta é de estar de janela, a olhar a rua, desde a escola primária até ao silos da suinicultura, rindo e falando com a Marisa, a dona do salão, e com a Preciosa que faz queijos e é mãe do Albano por quem tive uma paixão intensa no verão dos meus treze anos. Recordo que interrompia a brincadeira com as minhas primas com a desculpa de ter de ir beber água. Corria à cozinha, cujas janelas davam para os campos, e entretinha-me a olhá-lo no monte do moinho, ajudando o pai. Olhava-o e estremecia só de lhe imaginar o corpo suado, as mãos tisnadas do trabalho no campo, as pernas nuas roçando os fenos, as ortigas, as estevas. Mas a história do Albano merece outra atenção porque o amor que lhe tive foi um amor breve que não passou do desejo e por isso foi perfeito. Volto à Bia.

2011/05/10

Andorinha

Mostrei a tatuagem aos meus filhos. O mais velho, horrorizado, explicou-me que não tenho estilo para uma tatuagem. A minha filha do meio, indignada, arrepelando os cabelos, em estado de pura histeria, gritou-me que já não tenho idade para usar tatuagens. Valeu-me o mais pequeno que ainda encontra poesia nas coisas. Olhou o desenho, tocou-lhe e exclamou “Tens um passarinho tão bonito a voar no braço!”

Tarde de domingo

Encontro a mulher uma vez por ano na festa de aniversário de um sobrinho. Não pode ter filhos, tem o ventre seco, o bucho mirradinho, o interior cheio de peçonha. Todos os anos, se lamenta da má sorte, partilha técnicas de fertilização, queixa-se dos preços dos tratamentos. Este ano, à falta de filho, trouxe à festa uma cadela petit, focinho esborrachado, impecavelmente tratada, cão aristocrata, finíssimo, que já vi aquela raça em telas barrocas de tintas estaladas, aninhada nos braços leitosos de rainhas e duquesas. Chamou Margaret ao bicho. Corre a cadela Margaret com os miúdos pelos relvados. A mulher do ventre seco zela por ela com amor de mãe. Nunca a larga. Chama “Margaret!”, esganiçando a voz e levando a língua ao palato numa cambalhota atrapalhada que o nome estrangeiro obriga. Abre os braços à cadelinha quando a vê chegar, espavorida, língua rosada de fora. Explica aos meninos que a bicha está cansadinha, precisa de descansar. Limpa-lhe o focinho e as patas com toalhitas perfumadas.

Observo e penso e penso assim: mais lindo que o amor entre raças só o amor entre espécies. Uma coisa enternecedora. Varro o horizonte à cata da minha prole. O mais novo galopa. Trota como um potro. Já esfolou os joelhos, já rompeu as calças, já comeu folhas e formigas, já escorropichou duas garrafas de minis que encontrou abandonadas, ficou a plateia de mães horrorizada, ai que o menino se perde, coitadinho, e a mãe não lhe diz nada, desgraçada. O mais velho joga à bola a um canto do jardim e ensina palavrões aos primos mais novos. A minha filha está a quatrocentos quilómetros e, expliquei a quem por ela perguntou, despacha-me com três frases quando lhe telefono. Está tudo bem. Não te preocupes. Beijinhos, mãe. Olho a plateia de mulheres. Estão sentadas em cadeiras de plástico; comem folhadinhos de salsicha, bebem bebidas coloridas. Não dão por isso, mas trazem o corpo estafado. A maternidade cansa e mói em silêncio. É como um veneno que se bebe sem se dar conta. Há nelas uma felicidade genuína, uma maternal plenitude de confiança e experiência que me aborrece até à náusea. Muitas, olhando-me e à mulher da cadelinha, hão-de achar a vida madrasta, o destino muito vil e cruel: eu, displicente, deveria ser a dona da cadelinha aristocrata; a mulher do ventre vazio, amorosa, amável, tão disponível para participar nas tertúlias femininas sobre receitas da bimby e pediatras, deveria ser a mãe dos meus filhos. Compunha-se um bocadinho o mundo e fazia-se justiça na tarde de domingo.

2011/05/07

Etelvina



(Lisboa-Vila do Conde)

2011/05/03

Calipo de morango

Quando voltou da escola encontrou a casa comida pelo fogo. Havia uma multidão à porta que se calou quando a viu chegar, mochila às costas, lambendo um calipo de morango. A multidão ficou a olhá-la enquanto caminhava. Uma velha interrompeu o silêncio e o vazio. Agarrou-se a ela a chorar. Ai que desgraça, Luzia, que estás sozinha no mundo!, soluçava a mulher. Aquela sina, de total solidão, tomou-a a sério. A seguir, mostraram-lhe os corpos carbonizados dos pais.

Cansaço

Gosto de correr por causa da minha sombra reflectida no chão, guiando-me no percurso, antecipando a minha passada. Gosto de correr porque o faço só e a solidão é como o cor-de-laranja e o amarelo. Fica-me bem. Gosto de correr por causa do rio, do crepúsculo na outra margem, dos pássaros marinhos, do ranger das tábuas, dos chineses que chegam para jogar a sorte no casino. Gosto de correr por causa dos homens e das mulheres com quem me cruzo e que também correm. Uns mais velozes, outros menos, todos partilhando o prazer de cansar o corpo. Sobretudo, gosto de correr por causa desse cansaço que fica por dentro e faz lembrar outros cansaços.

2011/05/02

Ground Zero

Faz-me confusão que se celebre a morte de alguém como se se tratasse da vitória de uma equipa num campeonato de futebol. Os sorrisos de satisfação, os gritos de ordem, os abraços, os cartazes celebrativos, causam-me repulsa. Talvez seja necessário experimentar a perda para celebrar com alegria e um copo de espumante na mão a morte de um algoz. Durante o dia, perante a minha incapacidade de perceber a alegria dos nova-iorquinos, procurei encontrar alguém cuja morte me fizesse celebrar no meio de uma multidão. Passei o dia nessa busca. No comboio, enquanto corria com os meus ténis novos, alados, no portão da escola. Percorri a lista de ditadores sanguinolentos, de políticos abjectos, de ódios de estimação televisivos. Esmiucei a memória à procura de quem ao longo da vida me magoou profundamente. Pensei em padres pedófilos, em carrascos, em parricidas, em loucos, nos assassinos e violadores de velhinhas alentejanas, em homens que batem em mulheres e as matam dizendo que as amam. Não encontrei ninguém cuja morte me alegrasse. E, no entanto, cresci numa casa em que, volta e meia, de roda da televisão, parecia uma fogueira, se desejava frequentemente a morte e se explicavam métodos de eleminação. O meu pai sempre foi adepto do fuzilamento. Escutava as notícias e, de vez em quando, punha-se a rosnar entre dentes. A gente já sabia o que vinha a seguir. Carregava o cenho e expressava o desejo de fuzilar esquerdinos, comunistas, revolucionários, sindicalistas, pervertidos, homossexuais. A tia Dé, de volta do fogão, o avental engomado, pés de criança enfiados em chinelos de corda, não era grande adepta do fuzilamento, método asséptico, breve, quase indolor. Cada vez que ouvia notícias de pedófilos, de traficantes, de violadores, cerrava os punhos sobre os estufados de peru e, cuspinhando, fazendo uma careta, dizia que se os apanhasse, a esses malandros, lhes havia de picar o corpo como uma cebola. Muito picadinhos, dizia. Depois, explicava, havia de os dar a comer a uma matilha de cães. Habituei-me aos fuzilamentos do meu pai e aos picadinhos da tia Dé. Passados tantos anos, continuo a escutar-lhes com agrado as sentenças pesadas. Sinal de que estão perto de mim.

2011/05/01

Testículos de galo

Encontrei o escritor na fila da mercearia no domingo em que voltei com os miúdos para o apartamento. Eu vinha em ruínas, o corpo cheio de culpa, a garganta estrangulada por muitos nós, como se a liberdade fosse pecado, uma ignomínia intolerável. Entretive-me a espreitar as compras do escritor: três laranjas, uma pasta de dentes, um pacote de massa fresca, uma lasagna congelada. Nesse dia, não sei por que razão, decidi passar a comprar o jornal também ao domingo.

Canja de galinha

Tiro a gordura amarela da canja, uma placa lisa e brilhante que se formou pela noite, com o frio. Mexo o caldo gelatinoso afastando os cotovelos de massa. Procuro corações, moelas, fígados para a Dá, ovinhos só de gema para o Joaquim, pedaços de carne escura para o João, patas e pescoços para mim. Uma canja boa faz-se com um galinha velha, de carnes rijas, antigas, que só amaciam depois de muito tempo de cozedura. Enquanto reparto o caldo pelos pratos lembro a fadiga que antigamente me chegava aos sábados e aos domingos. Rondava o apartamento, os meus gestos eram mecânicos, neles não havia alegria, sequer amor, encontrava teias e carrascos em cada canto, grades nas janelas, o sol nunca entrava, havia musgos e bolores por toda a parte.

2011/04/29

Pita Shoarma

O João levou-me a jantar a uma roulotte perto do campo de futebol do sacavenense. Fiquei no carro durante algum tempo porque, no banco de trás, dormia o mais pequeno, empanzinado de canja de galinha e feijoada que sobrara do almoço. Durante algum tempo, zelei pelo sono do mais novo e observei o João, tratando do nosso jantar, pedindo duas pitas shoarmas, uma cerveja para mim, um sumol de laranja para ele, orgulhoso de me proporcionar uma experiência ao estilo do Anthony Bourdain, homem que sabe ser do meu agrado. Ali estava o meu filho recém adolescente, moreno, tisnado do sol, olhos redondos, as mãos enfiadas nos bolsos, ao balcão da roulotte. Dois homens bebiam imperiais. Outros comentavam o jogo do Benfica. Os brasileiros tiravam tirinhas do naco de carne que rodava lentamente no espeto. Apreciavam, com extraordinárias vozes de falsete, as formas físicas da futura rainha de Inglaterra. O meu filho, percebi-o bem, estava feliz por estar ali. De vez em quando, enquanto aguardava pelo pedido, olhava-me de soslaio e, sorrindo, parecia dizer-me assim: isto é o que sou, digo Telémaco, Penélope, Ulisses, leio os livros que escolhes para mim, mas não me obrigues a ir a concertos, a exposições de pintura, poupa-me ao martírio do cinema francês, não me amachuques mais a virilidade, não me lixes a adolescência com a tua sensibilidade feminina.

(A Dá, muito intuitiva, diz frequentemente que o João é o meu filho preferido. Digo-lhe sempre que não, que não tenho filhos preferidos, mas tenho.)

2011/04/27

L' appartement



(São tão bonitos, os franceses. Também os há feios. Mas falam francês.)

Humilhação

Vou participar numa prova. É uma prova pequena, quase doméstica. Explicaram-me que é conveniente traçar um objectivo para cada prova. Já defini o meu. Não é terminar a prova. Estou habituada a correr mais do que a distância do percurso. Também não é terminar a prova em determinado tempo. Estou a borrifar-me para o tempo. O meu objectivo é terminar a prova antes dos cinco homens com quem vou correr. Dois deles são favas contadas. Duvido que cheguem ao fim. Um é fotógrafo e vai parar de dez em dez metros para tirar fotografias. O outro já dormiu comigo na mesma cama. Conheço-lhe a inaptidão física. Os outros três, é que me preocupam. Não são fumadores, não bebem tequillas noite fora e tenho-os encontrado, ao final da tarde, a treinar. O meu desprezo pelo género masculino é assumido. Aliás, humilha-me profundamente continuar a gostar de homens. Fosse eu uma mulher coerente com os meus princípios e já há muito me teria tornado lésbica. Adiante. Os homens não chegam aos calcanhares das mulheres. Quero, por isso, mostrar a estes cinco que sou melhor do que qualquer um deles. Quero chegar ao fim e vê-los atrás de mim, língua de fora, bufando de humilhação.

2011/04/26

Entranhas

Angustia-me que o psd não se apresente como alternativa credível e consistente ao eleitorado. Como muita gente, ando com o meu voto nas mãos, sem saber a quem o dar. A inabilidade e a fraqueza do psd não me dão vontade de rir. Dá-me vontade de chorar, de pegar na canalha e fugir para um país do sul. Há, porém, quem se delicie com a miséria do psd. Batem palmas. Soltam gargalhadas sonoras. Fazem comentários jocosos. Gozar assim com a sorte deste país é uma coisa um bocado ordinária.

(No sábado, escutei a Clara Ferreira Alves durante cinco minutos no Eixo do Mal. Não a ouvi durante mais tempo porque não fui capaz. Revolveram-se-me as entranhas, mas dissiparam-se-me as dúvidas.)

2011/04/25

José



(resíduos de lar.)

2011/04/20

Catinga

Três dias no sopé da serra. Os meninos brincaram com a neve. A menina espantou-se por ser gelada e branca. O menino deslizou, veloz, no seu trenó vermelho. Passaram horas na água tépida e sem vida da piscina. O pai conviveu com os colegas, gestores, directores, auditores, consultores. Ao jantar, conversaram, entre outras coisas, sobre técnicas de despedimento. Um homem de olhos pequeninos, sorriso boçal, afagando o seu black berry, gabou-se da sua perícia. "Não me custa nada ter de despedir alguém. Já estou habituado. Quando estive em Angola, despedi uma preta só porque ela cheirava mal". A mulher do homem de olhos pequeninos – vesga, cabelo impecavelmente arranjado –, afagando ela também o seu telefone, sorriu, orgulhosa da competência do marido. A mãe passou o fim-de-semana ausente, a roer as unhas que prometera deixar crescer, a fumar cigarros e a beber copos de vinho tinto, com vontade de adormecer e acordar noutro sítio qualquer.

(pretérito mais que imperfeito.)

2011/04/19

Tindersticks



(Trancão-Escultura José de Guimarães)

Semana Santa

Um grupo de mulheres reza o terço numa salinha de paredes envidraçadas. A ladainha sai-lhes da boca, monocórdica, espalha-se pela nave da igreja, abafa o ruído que vem de fora. Estão naquilo muito tempo. Largam ave-marias, pais-nossos e jaculatórias, em catadupa, mistério a mistério, percorrem a vida de cristo, do nascimento sem pecado à agonia de um corpo nu crucificado. Pouco antes da salve-rainha, quando estão prestes a terminar, as suas vozes ganham certo alento. Será fé ou simplesmente alívio? Por fim, lançam-se num cântico desafinado que me chega como uma massa indistinta, sem palavras ou significado. Emudece-lhes então a voz. Escuta-se o roçagar das saias, o som seco dos missais a fechar, o chiar das solas de borracha dos sapatos ortopédicos no chão encerado. Saem da salinha do terço, pequenas, apressadas, consoladas. As mulheres que rezam o terço são velhas. O corpo perdeu há muito a doçura das formas femininas, não têm anca, nem mamas, nem ventre. O corpo tornou-se numa carapaça baça, jaspeada, e os membros, levemente arqueados, truncados, lembram pinças e tenazes. Quando falam soltam bolhas de água de mar. Atravessam a igreja com os seus passos pequenos de crustáceo. Sentam-se nos bancos que ficam junto do altar. Esperam a missa das seis.

2011/04/18

Acordar

Foi assim durante muito tempo. O meu despertar era sempre igual. Acordava triste e desesperada. Procurava o corpo na penumbra do quarto, desejando não o encontrar. Talvez alguém, durante o sono, compandecendo-se da minha dor, o tivesse levado para longe. Quando o encontrava, ao meu corpo, adormecido a um canto qualquer, pontapeava-o com violência para que se erguesse. Como se fosse um vagabundo que se despreza. Erguia-se o meu corpo, tão estiolado, tão frágil, entrava dentro dele e corria à cozinha a arranjar os pequenos-almoços dos meus filhos. Habituei-me à tristeza, que é como a solidão, fere, mas deixa em nós qualquer coisa, bela e única, que não se sabe explicar. Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de cerveja. Nunca me habituei, no entanto, ao desespero, ao choro louco, ao conforto das imagens sombrias, um parapeito para saltar, um rio de água barrenta, os bolsos cheios de pedras, os pulsos cortados com uma lâmina, lágrimas de sangue empapando a alcatifa cor de laranja do escritório do meu pai, sessenta comprimidos letais tomados ao pequeno-almoço como no poema. Hoje, não sei explicar porquê, voltei a acordar triste. Não me importo que a tristeza volte. Se vier só, abro-lhe a porta, deixo-a instalar-se dentro de mim. É o desespero que me assusta.

2011/04/15

Entorse

Por culpa dele torci um pé. Era altura do Natal. Andava eufórica porque, pela primeira vez, os meus pais me tinham autorizado a passar o fim de ano com um grupo de amigos. Uns dias antes, uma amiga oferecera-me uma cassete, preciosa, que ainda hoje guardo. De um lado, gravara várias canções do "Escritor de Canções" do Sérgio Godinho. Do outro lado, gravara outras tantas do "Por este Rio Acima". Ouvi esta cassete vezes sem conta, centenas de vezes, milhares talvez. As canções do Fausto punham-me em estado de euforia. Despertavam em mim uma vontade desenfreada de dançar. Ignorando os olhares trocistas do meu pai e os gritinhos preocupados da tia Dé - ó filha, olha que tu cais! - punha-me a dançar as canções do Fausto, bem no meio da sala, sob o olhar severo das divindades hindus, trazidas pelos meus pais da Índia. Mulheres serpentes. Homens com quatro braços e rosto de elefante. Ganesh, Shiva, Krisna, com os corpos delineados, esculpidos na madeira perfumada do sândalo, olhavam-me com espanto, não reconhecendo aquele dançar tão diferente do das suas terras longínquas. Era um dançar não contido. Não me limitava a abanar a anca ou a mexer os pezinhos. Aquela música entrava dentro de mim e fazia mexer todas as partes do meu corpo. Cheguei mesmo a aprender alguns passos de folclore que se adequavam perfeitamente ao ritmo daquelas canções. Foi num desses devaneios pela dança tradicional, entre saltos e pulos, com os braços no ar, a dar uma pirueta, que torci um pé. Ainda me lembro das gargalhadas da mana, da aflição das minhas mães, do meu pânico perante a iminência de, por causa de uma entorse (mas que entorse!), voltar a passar o fim de ano na companhia dos meus pais com doze passas na mão.

Tenho certo orgulho no episódio da entorse. Assim como tenho um orgulho um bocado parvo em gostar das canções do Fausto como gosto. Não sou capaz de o ouvir sentada numa cadeira como se estivesse a assistir a um recital de piano. Faço sempre figuras tristes nos concertos. Canto as canções aos gritos e danço. Comovo-me com a limpidez da sua voz e com a poesia das suas palavras. Se, no Sérgio Godinho, gosto da capacidade de se adaptar a novos ritmos e a novas sonoridades, no Fausto, gosto precisamente do contrário. As canções de agora podiam ser as canções de ontem. E vice-versa. É por gostar tanto das suas canções que me entristece um país que lhe não reconhece o valor. Dos meus colegas de faculdade, do círculo de amigos de então, muitos deles de esquerda, seja lá o que isso for, nunca conheci nenhum que amasse verdadeiramente o Fausto. Mentira. Havia um: o Rui. Mas o Rui era um caso muito especial. De direita, conservador, precocemente alcoólico, monárquico, excessivo em muita coisa, amava, acima de tudo, acima dos rótulos e das etiquetas, a música, os livros e as palavras. Já os outros, os semi-etilizados que, como eu, deambulavam pelo Bairro Alto, que se deslumbravam com o PSR, diziam gostar do Fausto. No entanto, o único disco que lhe conheciam era o "Por Este Rio Acima". Sim, pá, claro que gosto!”, e bebiam mais uma pinguinha de cerveja para acicatar o ser revolucionário. Um tipo de esquerda sabe que tem meia dúzia de obrigações a cumprir. Uma delas é dizer que gosta do José Mário Branco, do Fausto e do Sérgio Godinho. Gosto do "Navegar, Navegar". Quando diziam isto, tornava-se claro, óbvio, cristalino, que não conheciam a ponta de um corno da discografia do Fausto. O Fausto merecia veneração, devoção, admiração, reconhecimento. Digo mais. Merecia outro país.

(À conta do facebook - que previsivelmente abomino e dispenso - a minha irmã fez chegar este texto antigo ao Fausto. Diz que o leu e sorriu. Meu rico cantor maldito. Viesses tu à minha beira e mimava-te como a um gaiato pequeno.)

2011/04/14

Mariana das Sete Saias



(amo este homem, mas é que amo mesmo, e amo esta canção.)

Reflexão Dominical

Foi então que resolveu aproveitar as noites de domingo para pensar. Não há assunto que a intimide. Espanta-se com os seus pensamentos, alguns de inesperada elevação, outros assim-assim, outros maçadores que lhe entram pela cabeça dentro sem pedir autorização. Em certa ocasião, não foi há muito tempo, deu consigo a pensar na dívida pública. O marido em cima dela, como uma lapa agarrada a uma rocha, ela a pensar na crise financeira e no FMI. Assustou-se. Quando está na cama com o marido, à espera que se despache, Odete gosta de reflectir sobre assuntos que tenham a ver com a ocasião. Pensa em sexo e em tudo o que possa estar relacionado com o tema. Por exemplo, no passado domingo, enquanto esperava o orgasmo do marido, debruçou-se sobre a seguinte questão: um transexual que se apaixona por uma pessoa do mesmo sexo é heterossexual ou é homossexual? Pensou, pensou, pensou muito e não chegou a conclusões satisfatórias.

A cama, é nisso que hoje pensa, mostra como as mulheres são seres mais evoluídos e inteligentes do que os homens. Parece a Odete que a arte do fingimento, essencial à sobrevivência das mulheres na cama, exige sofisticação. Foram precisos anos e anos de evolução da espécie humana para as mulheres chegarem ao patamar de fingimento em que estão hoje. Desconfia que as mulheres primitivas, as australopitecas e pitecampropas, cada vez que eram penetradas, grunhiam, urravam, arranhavam, arrancavam o pelame, desesperadas com tamanha dor e desilusão. Odete não tem dúvidas de que muitas, depois do coito, pegaram numa marreta e, com os músculos da vagina ainda a latejar, fizeram justiça pelas próprias mãos. À conta da pureza dessas primitivas mulheres, não sabiam fingir, não sabiam padecer em silêncio, deve ter havido muita mortandade nos tempos antigos. Foi preciso uma evolução grande para as mulheres aprenderem a fingir.

É assim que Odete pensa enquanto espera. O marido, entretanto, já lhe puxou as cuecas para baixo e já aproximou o volume duro do pénis. Odete continua. As mulheres foram, ao longo dos tempos, apurando o fingimento. Aprender a gemer, a impar, a revirar os olhos foi um marco decisivo na evolução. Ficam os homens mais excitados e o martírio acaba depressa. As mulheres, conclui Odete, aprenderam a fingir e essa aprendizagem, essa especialização, apurada e íntima do seu género, mostra que, para além de abnegadas, dão o que têm e o que não têm, são inteligentes. Afinal, remata, a cama mostra que as mulheres são mais sofisticadas e inteligentes do que os homens. É no preciso instante em que termina o seu raciocínio, talvez um pouco confuso, que o marido a penetra. Com violência, enterrando-se nela, no seu buraco escuro de paredes ásperas. Custa-lhe sempre esse momento. Odete não se habituou ainda a ter aquele pedaço de carne dentro de si. Reconhece então que de pouco vale às mulheres a inteligência e a sofisticação. O que interessa é a força física de um corpo capaz de amedrontar outro.

2011/04/13

Mulheres Cantoras

Fiz um esforço para acabar o último livro da Lídia Jorge, eu que gosto de a ler. Nem a morte de Madalena Micaia me tocou, nem a ambição voraz de Gisela Batista me assustou. E estremeci quando encontrei escrita a palavra que mais odeio na língua portuguesa. É uma palavra inócua, com um significado insignificante, mas não a suporto. Não sou capaz de a dizer, muito menos de a escrever, e se alguém, falando comigo, a soltar da boca, fica marcada a ferro e fogo. O facto da Lídia Jorge ter escrito a tal palavra é coisa que me desgosta profundamente. Hei-de matar a desilusão que é este livro assim como mato a desilusão que, por vezes, trazem as pessoas que amo. Lido o livro, gostei do epílogo. Pouco mais.

2011/04/12

Dia Mau



(efeitos secundários da poesia.)

Câmara Lenta

Estavam quatro negros magníficos, de uma negritude muito intensa, quase azul, a jogar basquetebol no pavilhão do estádio universitário. Sentei-me a olhá-los. Jogavam sem empenho, utilizando apenas uma tabela, movimentando o peso do corpo com agilidade, mas sem eficácia. Volta e meia, soltavam gargalhadas ruidosas que vinham em cascata. Falavam numa língua que não consegui identificar, era uma língua corrida, de vogais muito abertas. Apenas uma vez um dos jogadores pareceu concentrar-se no jogo. Fez pontaria à tabela, a bola desenhou um arco perfeito e entrou no cesto. Nesse instante, não sei como o fiz, os meus olhos desaceleraram e consegui ver o negro azul em câmara lenta.

Cicciolina

A escolha do Fernando Nobre para ser cabeça de lista do PSD pelo círculo eleitoral de Lisboa e, em caso de vitória do partido, indicado para o cargo de presidente da Assembleia da República não é má. É péssima. Voltamos ao mesmo. É uma opção determinada pela fome de ganhar meia dúzia de votos. Os estrategas do PSD pretendem com tão miserável opção captar o voto de certa esquerda arejada - essa que vive em apartamentos de tectos estucados, passa férias em hotéis de charme e lê, com certo despeito, os livros da Agustina. A última coisa que o PSD deve fazer é entrar nesta engrenagem, lançando nomes, mais ou menos mediáticos, para ir buscar um voto ali, outro acolá. Não tarda nada, metem nas listas um homossexual, não pelo seu mérito, mas porque querem chegar ao eleitorado gay. Metem uma qualquer actriz de olhos bonitos, não pelo conhecimento que tenha sobre os assuntos de estado, mas para chegar aos intelectuais diletantes que se passeiam pelos teatros e auditórios. Antes uma Cicciolina, de sorriso imbecil, uma fiada de flores frescas na cabeça, que vá passear as tetas para o parlamento. É um péssimo arranque. É para o seu eleitorado que o PSD se deve voltar e esse quer sinceridade, alguma decência. Ao PSD, se o souber fazer, compete assumir aquilo que é. Sem querer parecer-se com o PS. É altura de mostrar as diferenças e não as semelhanças.

2011/04/11

Mosto

Pagava o preço no guichet da entrada. Atrás do vidro engordurado, um velho aprumado registava-lhe o nome num caderno de folhas de papel almaço. Entrava no bar. Um balcão longo em forma de s. Uma escuridão que se colava aos corpos. Olhava as raparigas disponíveis. Não lhe interessava se eram bonitas ou novas. Aturava a flacidez das gordas e a lassidão das velhas. Não procurava beleza, muito menos volúpia. Procurava apenas quem soubesse fazê-lo sofrer. A dor e a humilhação eram-lhe essenciais para continuar vivo. Gostava de cabedal, pregos, maquilhagens agressivas, lábios negros. Apreciava, sobretudo, saltos que se pudessem enterrar na carne, rompendo a fragilidade dos vasos capilares cutâneos, deixando-lhe marcas violáceas durante toda a semana. Escolhia a mulher que usasse os saltos mais altos e mais finos. Feita a escolha, pedia para ser levado para o gabinete de veludo preto onde uma panóplia de objectos – correntes, algemas, chicotes, chibatas, vendas, trelas -aguardava uso. Despia-se e deitava-se no chão. Pedia à mulher que caminhasse sobre o seu corpo. Explicava. Era preciso que o atravessasse sem hesitações. Sem medo. Devia caminhar como se caminhasse sobre um caminho conhecido, uma estrada de alcatrão, uma vereda de terra batida. Quando chegasse ao centro, onde o sexo se erguia, marmoreado, como uma coluna jónica, devia pisá-lo. Que o pisasse bastante, com força, vigor, como se estivesse no tanque de um lagar. O seu corpo feito mosto.

Um dia, porém, um salto agulha, talvez mais fino, talvez mais longo, enterrou-se no fuste do seu pénis. Sangrou. Levou quatro pontos. Jurou nunca mais voltar. Na semana seguinte, mal a ferida cicatrizou, voltou ao guichet de vidros engordurados, que a vida, a sua, era demasiado simples para poder aceitá-la. Não sabia viver sem sofrimento e sem humilhação. Nessa noite, a noite do seu regresso, rejeitou os saltos finos. Escolheu uma mulher que calçava umas grotescas botifarras de plataforma. Pediu-lhe calma. Queria continuar a sofrer, sim, mas com moderação. A mulher enfiou-lhe uma trela de pregos e entreteve-se a passeá-lo pelo bar. Ganiu a noite toda de satisfação. E ladrou afavelmente a um homem de cabelo grisalho que lhe fez uma festa.

(A sondagem da Universidade Católica que dá 33% ao PS diz muito sobre as taras deste país. Sempre defendi a anexação a Espanha.)

2011/04/07

Além do que se vê



(Lisboa-Olhão da Restauração)

2011/04/06

Infiltração

Tenho uma infiltração na cozinha. A água aparece a um canto, mesmo ao lado do lava-loiças, um fiozinho de água que nasce entre os azulejos brancos. Escorre parede abaixo e desagua no chão de mosaicos pretos e brancos. Ponho-me a fumar e a olhar para o fio de água que nasce na parede, para o lago que se vai formando no chão. Reconheço que, de vez em quando, me faz falta um homem, não na cama que tenho mãos habilidosas, competentes, trepam-me pelo corpo abaixo como bichos nocturnos. Faz-me falta um homem para o resto.

2011/04/05

Less



(Fui correr para o estádio universitário. Detestei.)

Aninhas

Porém, naquela manhã, talvez porque a rapariga lhe esfregasse o couro cabeludo com movimentos circulares mais firmes, pondo naquela massagem uma intensidade que não era habitual, deu por si a deitar contas à vida. Ia fazer quarenta anos. Quarenta anos. Tinha um casamento sólido, dois filhos, uma carreira de sucesso como analista sénior numa empresa de auditoria americana, viajava frequentemente na companhia do marido, conhecia o mundo através das janelas dos hotéis de cinco estrelas, vivia num apartamento espaçoso no centro da cidade com vista para os jardins da fundação. Tinha uma empregada interna, competente e silenciosa, que compensava na perfeição a sua falta de vocação materna. Quando chegava a casa, encontrava os filhos com banho tomado, o pijama vestido, já jantados, os trabalhos de casa feitos, as dúvidas tiradas, preparados para dormir. Nem uma nódoa de sopa nos pijamas, nem um vestígio de birras, nenhum choro, nenhuma lágrima. Abria a porta do apartamento, pousava as chaves do carro no móvel da entrada, beijava os filhos, sentia-lhes o cheiro perfumado da cosmética infantil francesa. Tinha sempre a sensação de que aquelas crianças não lhe pertenciam. Esse sentimento não a incomodava. A empregada idolatrava-a. Achava-a a mulher mais bonita da cidade. Imitava-lhe certos gestos e expressões. Aninhas era-lhe imensamente grata, embora nunca o demonstrasse. A empregada suportava o fardo da maternidade e poupava-a à vergonha de um fracasso. Se um dia os filhos falhassem, saberia que a culpa não fora sua, mas da empregada que os educara.

2011/04/04

Inquietação



(de Lisboa a Braga.)

2011/04/03

Raízes

Sou filha de um indiano e de uma alentejana, sou irmã de um negro, tenho raízes cruzadas, profundas, fasciculadas. Como já por aqui escrevi, as minhas raízes, fixando-me aqui, neste país, neste lugar, atravessam mares, desertos, cordilheiras, para me alimentar de outras cores, outros sons, outras palavras, imagens muito diferentes. As minhas raízes fazem-me aquilo que sou. Sou mestiça. O que é bom e mau. Estou bem em todo o lado e não estou bem em sítio nenhum. Desde muito cedo, na escola, na família, por causa dessas minhas raízes, arranjei muitas chatices. Os únicos sopapos que levei do meu pai, goês, conservador, foi à conta da urgência de acabar de vez com discriminações que me pareciam intoleráveis. Aos vinte anos, tornei-me dirigente de um movimento anti-racista, participei em reuniões, conheci gente, bebi muitas cervejas. Aos vinte e três cansei-me da luta anti-racista. Larguei o movimento, acabei o curso, casei, passei a engravidar de três em três anos. Os filhos que entretanto tive e o resto deixaram-me pouco tempo para militâncias. A minha única militância, a mais importante, é educar os meus filhos, explicar-lhe o mundo. O racismo, a intolerância, no entanto, são as únicas questões que me fazem despertar da letargia dos quase quarenta e que me fervem o sangue.

E o sangue ferve-me sobretudo quando topo com o paternalismo dos activistas anti-racistas, dos jornalistas politicamente correctos, das abordagens facciosas. Tenho nojo - é mesmo esta a palavra - dessa gente que tudo desculpa, que justifica atitudes, que apaga a responsabilidade individual, a liberdade das decisões. Os negros são todos bons selvagens. A miséria das mulheres ciganas aceita-se em obediência a um determinismo cultural. O ataque à jornalista Lara Logan na praça Tahrir é coisa que se esquece. Não existiu. O racismo profundo dos indianos, tão triste e patético, plasmado todos os dias nas propostas de casamento que aparecem nos jornais indianos, onde engenheiros informáticos pedem noivas clarinhas, quase brancas, de castas compatíveis, também se esquece. Não é racismo. É uma herança milenar. Entre um admirador confesso do Le Pen e da sua filha e um activista anti-racista, quase que prefiro o primeiro. O primeiro é racista e assume-o. Posso abertamente contestá-lo. O segundo, sendo racista, tendo entranhado no corpo a forma mais abjecta de racismo, esse paternalismo que faz lembrar a caridadezinha cristã, está convencido de que não o é. Dá muito mais trabalho contestar um activista anti-racista do que um racista.

2011/04/01

Companheiro



(Fui a este concerto e chorei. Às vezes, muitas vezes, tenho saudades da mulher que fui.)

2011/03/31

Modern Family

Depois de deitar os miúdos, depois de beber um iogurte e de enfiar uma fatia de fiambre pelas goelas abaixo, que o jantar se esquece quase sempre no meio das rotinas domésticas, depois de ir de quarto em quarto - ler uma, duas, três histórias ao mais pequeno, aconchegar a roupa à do meio, levantar o lençol ao mais velho para ver o que anda a fazer com as mãos - depois de fumar um cigarro no estendal e beber um copinho de licor, quando o dia está prestes a terminar e o apartamento finalmente sossega, sento-me em frente da televisão. O bem que esta família me faz é inimaginável. Esqueço as misérias do país e as minhas: a queda persistente e crónica de cabelo, o carro espatifado no portão da garagem. E tenho um fraquinho pelo Phil. Sempre gostei de imbecis.

2011/03/29

Branco

Sou praticante do voto em branco. Não voto por exclusão de partes, nem para penalizar outros candidatos, nem congeminando cenários futuros para apurar a utilidade do meu voto. Voto quando acredito nas ideias de alguém, quando tenho esperança na sua coragem, capacidade de análise e decisão. Nos últimos anos, que me lembre, votei duas vezes. A primeira vez foi nas legislativas de 2002. Foi uma escolha desastrosa. Durão Barroso cedeu à sua vaidade pessoal. Demitiu-se para ocupar o cargo de presidente da comissão europeia, defraudando, de maneira um bocado abjecta, o voto de quem, como eu, nele votara. Senti-me, na altura, como uma esposa dedicada, traída, trocada por uma boazona de tetas siliconescas. A segunda vez que votei foi nas legislativas de 2009. A Manuela Ferreira Leite, competente e austera, pareceu-me a pessoa certa para tomar conta disto. Depois, sendo mulher, apelava ao meu feminismo. É superior às minhas forças. Acredito genuinamente na superioridade das mulheres. Foi também uma má aposta. Foi uma escolha solitária. O país preferiu manter o regabofe, caminhar com alegria para o precipício.

Perante o cenário de eleições antecipadas, incomoda-me voltar a votar em branco. O momento é decisivo. Mas, por muito que me esforce, não serei capaz de votar neste PSD e neste líder. Há nele uma vacuidade imensa, muita delicadeza, uma permeabilidade que me assusta. As companhias não são recomendáveis. A título de exemplo, um dos vice-presidentes é o Marco António, figura meteórica do partido, vereador, deputado, secretário de estado, administrador de várias empresas municipais do município de Valongo, um currículo tão típico quanto demonstrativo daquilo que é e quer da vida política. Ora, o André Freire contava ontem no Público que o tal Marco António terá acicatado o líder, explicando-lhe que, de duas, uma: ou tinha eleições no partido ou no país. Uma pessoa lê uma coisa destas e chega-lhe um frio na espinha que se espalha pelo corpo e se aloja no vazio dos ossos. Votaria em alguém que fosse capaz de governar contra o seu partido, a favor dos portugueses, sabendo que governar a favor dos portugueses é, neste momento, governar contra a vontade dos portugueses. Parece óbvio, no entanto, que nem o Passos Coelho será capaz de governar contra o partido, nem deixará de cair na tentação de governar com falinhas mansas, tratando os portugueses, como é prática habitual, como débeis mentais a quem se mente para conseguir meia dúzia de votos. Estou fadada a continuar a votar em branco, o que me chateia profundamente, sobretudo pela dificuldade de explicar aos meus filhos mais velhos a minha decisão.

Menina Elsa

Desligou o telefone para atender a mulher que naquele instante entrava no consultório. A sala de espera estava já cheia. Dois homens grandes, musculados e de braços bronzeados, falavam junto de uma janela onde um cóleo vermelho crescia em altura, muito delgadinho e espigado. Uma rapariga nova, vestida com descuido, chinelos enfiados nos pés, o cabelo hirsuto, num desalinho, folheava revistas cor-de-rosa. Um casal velho aguardava imóvel. Era o homem que estava doente. A pele tinha-a macilenta, baça. Tremia-lhe o olhar e as mãos. A mulher estava de olhos fechados. Parecia descansar. Um rapaz, muito gordo, o rego do rabo peludo a espreitar nas calças de ganga, dormitava no colo da mãe. O televisor, colocado num canto do tecto, parecendo um enorme olho, mostrava imagens da campanha. Candidatos sorridentes. Comícios cheios de velhas sem dentes, chegando de passeio nas camionetas dos partidos para verem os senhores doutores e almoçarem no pavilhão da câmara municipal. Bandeiras agitadas por obrigação, sem entusiasmo ou alegria. A menina Elsa verificou o nome da mulher na sua agenda. Vinha com um atraso de meia hora. Não fazia mal. As consultas estavam atrasadas. Tinha cinco pessoas à sua frente. Estas consultas não são como as outras, explicou. Podem durar cinco minutos ou cinco horas, e soltou uma gargalhada pequenina satisfeita com o seu exagero. Voltou a pegar no auscultador e a marcar o número do ministério onde a irmã trabalhava. Espreitou o televisor da sala de espera. Lá estava o senhor primeiro-ministro. Sempre elegante e distinto. E muito sensível. Explicara numa entrevista que gostava de poesia. Lia o Pessoa e o Camões. Ficara deslumbrada com tal confissão. Só as pessoas muito cultas gostavam de poesia. A menina Elsa só lera o Camões no liceu e achara a sua obra longa e aborrecida. Ao Pessoa só lhe conhecia o chapéu, a figura franzina, o bigodinho ridículo. Poemas, nem um. Tinha, porém, uma admiração grande e sincera por toda a gente que lia poesia. Também por quem ia ao teatro e a concertos de música clássica. Só gente de muita classe frequentava esses círculos de elegância e snobismo cultural aos quais não pertencia mas que olhava com espantosa veneração. Ficara tocada com a sensibilidade do primeiro-ministro. Um homem assim, culto e sofisticado, capaz de citar poemas do Fernando Pessoa numa conversa, capaz mesmo de, no final de um dia de trabalho, depois da estafa da política, do cansaço das decisões, calçar as pantufas e ler a lírica camoniana, merecia a sua imensa admiração. Melhor, merecia o seu voto. De certeza absoluta que a outra candidata não lia poesia. Era um estafermo. E tão feiinha. E tão mal vestida. Coitadita. Pousou o auscultador. A irmã não lhe atendia o telefonema. Olhou as marcações daquele dia. A senhora doutora tinha um acordo com a polícia e com o sindicato dos bancários. Os polícias e os bancários eram muito dados a doenças do foro psiquiátrico. Percebera isso mal começara a trabalhar no consultório. Deviam ser profissões de grande desgaste. Fraqueja-lhes amiúde o espírito. Vinha-lhes depois uma astenia, uma prostração generalizada, ficavam muitas vezes com um olhar estranho, ausente. Era sempre um corrupio, de manhã à noite, naquele consultório. A menina Elsa via-se aflita para gerir a agenda. Tinha os seus truques e regras. Em frente do nome de cada paciente colocava, com uma letra redonda, as suas notas pessoais. Eram apontamentos breves que a ajudavam a gerir com justiça a agenda da senhora doutora. Por exemplo, as mulheres com filhos tinham prioridade na marcação das consultas. Os homens e as solteiras que ficassem com as consultas do final do dia. A menina Elsa não tinha filhos mas sabia, pela vida das irmãs, que a maternidade era muito trabalhosa. Exigia permanente assistência. Telefonava na véspera a confirmar as marcações. Usava de diplomacia para justificar atrasos e urgências. Conseguia encaixar sempre mais um paciente. Conhecia-os pelo nome próprio e pelo apelido. Bastava que lá fossem uma vez que, na volta, já os cumprimentava com um enorme sorriso. A senhora doutora era diferente. Sorria pouco. Sempre distante e fria. A menina Elsa, pelo contrário, era uma mulher de afectos, com um coração muito açucarado e uma voz envolvente. Mesmo os agentes da polícia, habituados à aspereza da vida, a princípio, estranhavam aquela voz meiga e aqueles modos familiares e gentis. Acabavam por se acostumar e com ela partilhar alguns dos seus padecimentos. As noites mal dormidas, os pesadelos, os tremeliques, os efeitos da medicação. Ela tinha sempre uma palavra de conforto e alento. Já se habituara aos nomes das doenças, dos medicamentos, das marcas. O triticum e o lexotan tratavam depressões levezinhas. Os doentes bipolares tomavam sempre lítio e ácido valpróico. Os esquizofrénicos tinham de se tratar com anti-psicópicos, por causa dos delírios, e às vezes, com tranquilizantes. O valuim e o zoldipem eram muito eficazes. A verdade é que a medicina psiquiátrica já tinha poucos segredos para a menina Elsa. Se um dia acontecesse alguma coisa à senhora doutora, que deus nosso senhor o não permitisse e a mantivesse por cá, distante e fria, por muitos mais anos, ela conseguiria assegurar o bem estar dos agentes maníacos, dos bancários deprimidos, das mães de família exaustas, escutando-lhe os desabafos e prescrevendo-lhes com a sua letra muito redonda os remediozinhos com nomes esquisitos.


(2009)

2011/03/25

Roda Viva

Chacais

Ontem, a notícia de abertura do jornal das oito, era uma coisa muito tendenciosa, como acontece tantas vezes quando se fala do PSD. Apontavam-se as contradições do seu líder. O homem que, no seu livro, se insurgira contra o IVA, assegurando que não recorreria ao seu aumento, admitira em Bruxelas, em função da avaliação da situação financeira do país, aumentar tal imposto. Indesculpável. Bastou um dia, um diazinho, e começam os suspeitos do costume, os chacais, a cair em cima do Pedro Passos Coelho, apontando-lhe contradições, acudam, é um demónio, pior, muito pior do que o Sócrates, quiseram livrar-se de um homem tão bem apessoado, tão esforçado, queria salvar o país e não o deixaram, coitadinho. É pena que o entusiasmo que os jornalistas e comentadores agora usam para apontar as falhas, os erros, não se tenha notado, durante estes seis anos, para denunciar os sucessivos ardis, a falta de vergonha na cara, a mentira compulsiva, a manipulação descarada de informação, a total irresponsabilidade das promessas que se fizeram nas últimas eleições. Um governo de esquerda, mesmo sendo uma lástima, merece sempre a complacência dos chacais.

A tia Dé, querida comunista, que se deixou cativar pelo Sócrates, de máscara cirúrgica a tapar-lhe a boca, para não passar a constipação aos meus filhos, mal escutou a notícia do aumento do IVA, lançou-me um olhar furibundo, como quem diz, estás a ver a besta que o homem é. Eu também estou muito doente, tenho as vias respiratórias entupidas com muco, mal respiro, não corro há mais de uma semana, trago o corpo perro, cheio de ferrugem. Não consegui, por isso, arranjar uma discussão com a minha tia. Mas custa-me imenso vê-la cair na lábia dos chacais.

2011/03/24

O livreiro é um homem alto, tímido, pouco dado a cortesias. Nunca se ri. Fala pouco e não se alonga em conversas com os clientes. Diz apenas o que julga indispensável a uma transacção transparente e rápida. Só lhe notei uma alegria breve quando lhe pedi o auto de natal pernanbucano e, numa outra ocasião, quando comprei uma edição muito velha, estafada, das palavras poupadas. Eu, tão contente, por ter encontrado aquele exemplar, todo escrevinhado por uma sara teotónio, depressiva quase de certeza, que encheu de poemas lacrimosos os espaços em branco, folhas de plátano e de amieiro secas entre as páginas, bilhetes de cinema e de comboio também lá guardados, um livro assim, vivido, é difícil de encontrar, que os livros chegam-nos mortos e somos nós que lhes damos vida, eu, tão feliz por encontrar aquele livro e ele, o livreiro, a dizer “ela é óptima, não é?”, eu a perceber a pergunta, mas a topar-lhe os olhos muito frios, gelados, totalmente inexpressivos, a boca dizia uma coisa e os olhos não diziam nada, como se boca e olhos pertencessem a pessoas diferentes. Acho que não lhe respondi. Paguei-lhe e fugi. Vê-se que o livreiro é um homem que gosta de livros, há-de ter um rol de leituras invejável, sólido, mas, coisa estranha, não o consigo imaginar a falar com entusiasmo daquilo que lê. Hoje, não sei que se passou, o livreiro pareceu-me outro homem. Continuava de poucas palavras, mas movimentava-se de um modo diferente como se se tivesse libertado de qualquer coisa que lhe pesava no corpo. Quando lhe pedi o livro da Lídia Jorge, veio comigo até à bancada, ligeiro. Quando lhe pegou, percebi-o, afagou-o, sentindo a maciez da capa aveludada. E, durante aquele tempo, cantarolou alto uma canção do Ney Matogrosso. Os olhos continuam a ser um poço, mas, lá no fundo, atrás da escuridão, há um ninho de musgo onde vive um pássaro azul.
(havia de falar do país e tal e coisa, que anda tudo numa azáfama de comentários e brilhantes dissecações, mas o país interessa-me pouco e o livreiro interessa-me muito.)

Marisa

Marisa entrava no banco, picava o ponto, abria o computador e ia tomar o pequeno-almoço ao snack-bar do centro comercial. O pedido era sempre igual. Um galão morno e um bolo que escolhia na altura, de acordo com o humor e o apetite. Se acordava com desejo, o corpo quente, a vulva levemente inchada, pedia um jesuíta. Se a noite fora de insónia, os olhos postos nas horas do despertador, pedia um mil-folhas. Se acordava murcha, tristonha, como lhe acontecia tantas vezes, o amanhecer tão desgraçadinho visto do apartamento da Bobadela, pedia uma bola de berlim recheada. Era um consolo, um regalo, uma satisfação.

(o resto, querendo, podem ler aqui.)

2011/03/19

Reptilia



(música de correr.)

2011/03/18

Ocidente

O doutor Sanjay pergunta-me pelos métodos anti-concepcionais. Explico-lhe o costume. Não os utilizo porque não preciso. O médico levanta os olhos da folha de papel, esboça um sorriso, pega-me nas mãos e, com ternura, diz-me “Ana Clara, não se preocupe, há-de encontrar o seu príncipe encantado!”. Fico melindrada com a conversa, mas não lho posso mostrar que um bom ginecologista é muitíssimo difícil de encontrar. Vou ali para me inspeccionarem o aparelho reprodutor, para me apalparem as mamas, para me vistoriarem a vagina, os ovários, o útero. Dispenso os votos de um futuro radioso, feliz, monogâmico, ao lado de um homem. Observo-lhe as mãos. É um velho com mãos de criança. Merece uma resposta. “Só se for uma princesa encantada. Estou farta de príncipes”, digo para o provocar. O doutor Sanjay revira os olhos e afaga a pêra grisalha. Percebo, pelo olhar, que lamenta, profundamente, a decadência do ocidente.

Jardim de São Lázaro

Atravesso o jardim de são lázaro e sinto o olhar dos velhos que jogam às cartas pousado em mim. Há uma japoneira florida e vários estudantes da escola de belas artes desenham à vista perto do coreto. Têm cabelos despenteados, barbas ralas, vestem com descuido. Nenhum deles levanta os olhos do papel para me olhar. Sou velha e invisível para os estudantes da escola de belas artes. Só os idosos largam a sueca para me ver atravessar o jardim. Levo o corpo firme, o vestido justo, o cabelo caído pelas costas. Tenho pressa de chegar à estação para apanhar o comboio que parte para Lisboa. O olhar dos velhos, devasso, atrevido, faz-me desacelerar a passada, caminhar mais devagar, prolongar o momento. Sou nova, desejável, para eles. Os velhos do jardim de são lázaro gostam de me olhar e eu gosto que eles me olhem.

2011/03/12

2011/03/10

Primo Renato

O primo Renato vive em Margão nunca casa antiga com telhado de telha vã. A casa é um amontoado de móveis escuros, desirmanados, estragados pela humidade. Na entrada, como em todas as casas goesas católicas, há um altar com uma imagem de Cristo. O primo Renato tem a doença de Parkinson há muitos anos e vive com a mulher e a filha numa casa que está cheia de fotografias de um homem que parece o Amitabh Bachchan dos filmes dos anos setenta. Explicaram-me que era um amigo muito chegado. Não tendo casado, viveu com o primo Renato e a mulher a vida toda. Dizem que o primo Renato e o amigo estavam sempre juntos. Eram inseparáveis e felizes, unidos por uma amizade muito forte, nunca vista. Sentado no balcão da sua casa antiga, o primo Renato parece alheio a tudo, como se continuasse a viver num tempo cristalizado, numa Goa portuguesa. Não percebe que a sua casa antiga, de telha vã, esmaecida pelo tempo, foi engolida pela feiura da modernidade ordinária de Margão. Ao contrário da família mais chegada de Corturim, todos à imagem do meu pai, muito ruidosos, faladores, de gargalhadas fáceis, maldizentes, o primo Renato tem um ar distinto, é um verdadeiro goês. Parece ter nascido assim, educado, incapaz de um gesto feio, uma dignidade imensa, todas as qualidades dentro dele, sem ter de provar nada a ninguém. Tem delicadeza que é coisa que não existe na casa de Corturim, onde se grita e chora, onde se levam as mãos ao peito e se arrepelam cabelos. O primo Renato vive com a mulher e a filha que o tratam com a generosidade do amor que lhe têm. No balcão da sua casa antiga, o primo Renato só desperta do mundo em que vive quando se fala do amigo. Os seus olhos cinzentos enchem-se de lágrimas que a mulher, dedicada, limpa com um lenço de algodão. O primo Renato não a vê. Acho que não a viu a vida inteira, que o seu olhar, cinzento, aguado, sempre se fixou no seu amor.

2011/03/08

Manhã



(Levanto-me às seis da manhã para correr dez quilómetros.)

2011/03/07

Memórias

Não sei o que deu à minha irmã para emprestar o livro da Isabela Figueiredo ao nosso pai. No sábado, quando entrei no escritório, reparei no livro em cima da secretária de fórmica que veio de Lourenço Marques. Perguntei-lhe se estava a gostar de o ler. Enfiado no roupão, as pernas encostadas ao aquecedor a óleo - um goês velho nunca se acostumará ao frio lisboeta - fez um esgar de nojo e disse que não. Não estava a gostar mesmo nada. Não se pronunciou sobre as memórias partilhadas, não explicou se as aceitava ou rejeitava. O que o enojava no livro eram as asneiras. Cona. Foder. Palavras proscritas, escritas vezes sem conta, até à náusea. A minha filha, que viera comigo cumprimentá-lo, assim que ouviu falar do asneiredo, arregalou os olhos e sorrateiramente pegou no livro. Pôs-se a lê-lo à socapa. Não vais ler este livro, pois não, mãe?, perguntou indignada. Não, claro que não, expliquei-lhe. Era lá capaz de ler um livro cheio de asneiras. Ou de ver um filme pornográfico. Ou de apanhar uma bebedeira. Ou de dormir com um estranho. Jamais. Sou uma mulher seríssima. Sou a tua mãe. À noite, mal deitei os miúdos, larguei a menina Cunegundes (cada vez que lhe leio o nome, imagino uma orgia de cunilínguos, profundos e certeiros, no melhor dos mundos possíveis) e peguei no caderno de memórias coloniais. A Isabela Figueiredo escreve muito bem, sem pretensões ou artifícios, desfiando memórias dolorosas sem tornar a dor banal. Mas, lido o livro numa noite, de uma assentada, percebi uma coisa. A minha África é diferente da África dela. Não encontro, nas memórias da minha família, desprezo ou ódio. Nenhum. Só culpa. A minha África é uma história que cada um de nós carrega em silêncio, sem nunca lhe mexer. Porque magoa. É uma história com apenas quatro personagens: o jovem goês; a negra, menina-mulher, sozinha na beira de um caminho de poeira vermelha a chorar, sem homem e sem filho; a enfermeira, a mais bonita do lar da rua da Sociedade Farmacêutica, que se casou com o goês e fez seu o filho da negra; o menino sem memória, mulato, que se aninha no colo da enfermeira portuguesa e lhe pede “mamã, faz-me cabelo de branco”.

Pai

Nunca fui ao cinema com o meu pai. No domingo, assim do nada, convidou-me para ir ver o discurso do rei. A minha mãe aceitou ficar com a minha ruidosa prole, mas, como quem não quer a coisa, lá foi dizendo que passa a vida a pedir ao meu pai para a levar ao cinema e que ele arranja sempre mil desculpas para nunca a levar. Dei-lhe um beijinho e um abraço. A minha mãe é como uma criança pequena, precisa de mimo, atenção, muito colo. Depois olhei-lhe nos olhos e expliquei-lhe que é tempo de desistir: por mais que ela se esforce sou eu a mulher da vida do pai.

2011/03/06

Garbatella

2011/03/04

Marta

Era sempre igual. Cada vez que lhe nascia um filho, fugiam-lhe as palavras e chegava-lhe uma tristeza muito grande. Andava naquilo que tempos. O corpo branco como um cadáver. Não se levantava. Alimentava-se de gemadas muito doces e chás de carqueja que a vizinha lhe trazia para a curar da anemia. Violante, e isto custa a explicar, não se preocupava muito com a tristeza que lhe comia as entranhas, nem com a mudez que lhe selava a boca. Sabia haver naqueles seus padecimentos um carácter transitório. A tristeza vinha, instalava-se nela, levando-a a uma agonia profunda, a um mutismo absoluto. Porém, assim como chegava, partia. Uma manhã, quando menos o esperava, acordava e as palavras estavam todas dentro de si, readquiria o dom da fala e o resto: a alegria de viver. Tinha vontade de beijar os filhos, de lhes mexer nos seus rostos de porcelana com as suas mãos de barro. Arrumava a casa de ponta a ponta. Saltava da cama, prostrava-se de joelhos em frente da imagem de nossa senhora a agradecer o milagre. Depois ia à sua vida, tratava dos filhos, do marido e da casa. Pedia à vizinha que não lhe trouxesse mais gemadas. Tinha a língua encortiçada de tanta doçura. Só uma vez as coisas não se passaram assim e as palavras custaram a entrar-lhe de novo no corpo. Foi quanto nasceu a sua sétima filha: Marta.

2011/03/02

Honra

Na Alemanha, karl-Theodor zu Guttenberg – o jovem ministro da Defesa, dado como provável sucessor de Ângela Merkel por ser um político talentoso - demitiu-se. Foi acusado de plagiar uma tese de doutoramento. É um comportamento censurável, mas poucochinho. Vivemos numa época em que a informação circula veloz; é de toda a gente e não é de ninguém. Toda a gente plagia. Em França, a Ministra dos Negócios Estrangeiros, Michèle Alliot-Marie, também apresentou a sua carta de demissão. Cometeu o crime hediondo de ter estado de férias na Tunísia durante os protestos populares. Consta, por outro lado, que a sua família (os pais, não ela) tem negócios com governantes magrebinos. Mais uma vez, é um comportamento censurável, mas pouco. Em Portugal, o primeiro-ministro, ao longo desta penosa travessia que tem sido o seu último governo, foi acusado de coisas bem piores – burla, caciquismo puro e duro, clientelismo, falsidade - e nada se passou. É que, em Portugal, ao contrário do que sucede nos países do norte da Europa, não existe responsabilidade política. Os cidadãos não se importam de viver numa democracia meramente formal. Existe, isso sim, para conveniência de quem a invoca, uma coisa que se chama responsabilidade criminal. Em Portugal, os políticos podem prevaricar, podem passar à frente dos velhinhos nos centros de saúde, podem ser desonestos, amorais, podem ser totalmente inaptos para desempenhar os cargos para os quais foram eleitos, podem prescindir com descaramento da ética pública, podem ser, no fundo, uns autênticos filhos da puta, porque sabem que, no final, a justiça cumprirá o seu papel e, sob o manto respeitável do despacho de arquivamento, apagará desonras, limpando chagas e feridas.

2011/03/01

Melancolia

Verdes Anos

Acordo ao som da canção.
Deitada na cama, a claridade da manhã a entrar pelas frinchas dos estores, com um nó a estrangular-me a garganta, uma tristeza a entrar-me devagar pelos orifícios do meu corpo, recordo. Ilda, Júlio. O tio de Júlio, sapateiro. A entrada da reitoria com os painéis do Almada Negreiros. O céu cinzento a ameaçar com nuvens espessas. O chão do café coberto de beatas e serradura. As avenidas novas da cidade, rasgadas em paralelas e perpendiculares. Os prédios altos, tão altos, quase a tocar o céu. A casa onde Ilda trabalha. O senhor, a senhora, a sobrinha dos senhores. O passeio de domingo até ao aeroporto por entre caminhos poeirentos, quentes, de pinheiros, arbustos, gargalhadas, cumplicidades. Ilda e Júlio felizes. Os aviões, lá ao fundo. A cidade, a preto e branco. Os seus limites visíveis, palpáveis como se tivessem sido traçados a lápis por um guardião gigante. Aqui acaba a cidade, o alcatrão, o fumo, as paredes, os muros, a confusão. E aqui começa o campo, o verde, o azul, as hortas, o regato, ali uma casa, animais, árvores. Recordo, sobretudo, o baile nesse local mágico e único que reconheci mal o vi através dos olhos do Paulo Rocha. O tecto pintado, por mim, imaginado em tons de ocre e laranja, os desenhos indefinidos, esboroados, a escadaria da entrada com os degraus gastos, as arestas de mármore arredondadas pelo uso, o pátio interior, por cima, um rectângulo branco de céu. As janelas enormes por onde, naquela tarde, distante e melancólica, entrava uma luz fraca, crepuscular. Naquela tarde, ouvia-se esta canção. Esta canção, infinitamente bela e triste, que anunciava o fim.

2011/02/25

Roda Viva

Static Man

Março, o meu mês, trará o novo romance da Lídia Jorge. Enquanto não chega, releio O Jardim Sem Limites, leitura recorrente porque tenho uma paixoneta antiga pelo static man. Por causa deste livro, há alguns anos, passei uma tarde em Alfama à procura da Rua da Tabacaria e da Travessa das Gáveas. As ruelas estavam cheias de brasileiros, mestiços de camiseta e calções curtos, e uma morrinha caía de um céu muito escuro e fechado. Havia turistas italianos, extasiados, muito tolos como sempre costumam ser, que fotografavam o rio visto de Santa Luzia. Descobri a Travessa das Gáveas num instantinho e tive uma desilusão. Das maiores da minha vida. Não era nada como a imaginara a partir do romance. Um muro alto, uma casa branca de cortinas rendilhadas, uma nespereira de frutos oxidados. Esperei pela rapariga cachalote enquanto mordisquei uma nêspera. Ela nunca chegou. Eu nunca descobri a Rua da Tabacaria.

Mal-amanhados

O Rui Lagartinho, no Público, escreve sobre o romance de estreia do Paulo Ferreira. Termina assim: “impressiona-nos que subsistam editoras que se dão ao luxo de se demitir da sua função mais nobre, deixando chegar às livrarias esboços mal-amanhados de romance como este”. Não conheço o Paulo Ferreira nem li o livro que escreveu. Sou incapaz de avaliar o acerto da crítica do Rui Lagartinho. Porém, o que diz em relação às editoras é bem verdade. Há editoras, a Quetzal é uma delas, que catam autores da blogosfera como se fossem piolhos, não percebendo que à blogosfera se vão buscar as pipocas doces e demais apreciadoras de sapatos de saltos compensados. Não se encontram na blogosfera bons escritores e boas escritoras. E não se encontram por uma razão simples. Não estão lá. O tempo da escrita literária é diferente do tempo da escrita blogosférica, corrida, desabrida, concreta, para consumo imediato. O tempo da escrita literária exige entrega e disponibilidade. É um tempo de solidão e angústia. É constrangedor encontrar esses livros mal-amanhados, como lhes chama o Rui Lagartinho, nos escaparates das livrarias. Até porque, quase sempre, são escritos por homens e mulheres interessantes, que, sendo bons bloggers, são maus escritores. Tais livros, no entanto, são sempre bem promovidos pelas editoras, as capas são catitas, os autores vão à televisão, dão entrevistas nos suplementos literários e os críticos amigos cumprem o seu papel, fazendo críticas jeitosinhas. De que vale escrever um mau livro?

Beco

Gritei a primeira vez e a chinesa largou o fresco do interior da loja de quinquilharia e assomou à porta. Gritei a segunda vez e dois rapazes do bairro, vestidos de preto, boné na cabeça, o corpo arrumado à parede suja de um prédio, entreolharam-se. Gritei a terceira vez e as freguesas da mercearia - uma velha de xaile e uma negra indolente de refegos -, largaram as compras e vieram postar-se na calçada, à espera de um espectáculo que as livrasse do tédio. Quanto mais eu gritava, mais o homem me apertava os pulsos, imobilizando-me à porta do restaurante indiano. Olhei-lhe para dentro dos olhos cada vez que gritei. Só quando gritei a quarta vez e o meu grito percorreu o beco, estilhaçando vidros, açoitando os gatos, matando baratas, é que o homem me largou.

2011/02/16

Baltazar Abelha

O operário desceu os sete lances de escadas. Chegou cá abaixo e explicou ao encarregado da obra que o morador do 7º-A se recusava a tirar os seus pertences da varanda: vasos, colchões velhos, cadeiras, até um armário de madeiras podres. Também se recusava a apanhar a roupa que se encontrava a secar nos dois estendais da janela da cozinha. O encarregado da obra era um homem sábio. Escutou em silêncio. Conhecia muitos axiomas e teorias. Sabia, por exemplo, que, sempre que nos aparece um problema pela frente, o melhor a fazer é torná-lo no problema de outra pessoa e esperar que ela o solucione. Olhou para a janela do 7º-A. Viu um homem de olhar alucinado; era Baltazar Abelha que os espreitava com um olhar ameaçador. Nem por um momento lhe passou pela cabeça subir os sete lances de escada e tentar convencer o morador do 7º-A a retirar todos os seus pertences da varanda e estendais. Explicou ao operário que deveriam esquecer o sétimo andar e começar, desde já, a pintura do oitavo andar. Ligaria para a câmara ao final do dia. Eles que mandassem algum técnico da divisão administrativa tratar do assunto. Por ele, o edifício C do bairro camarário podia ficar assim: fachadas tratadas com aprumo, raspadas, reparadas, banhadas com impermeabilizantes anti-musgo e anti-bolores, pintadas a rolo com a cor escolhida pelos arquitectos da câmara, um rosa chá muito clarinho, a fazer lembrar vivendas à beira-mar com floreiras perfumadas; as paredes exteriores do 7º-A mantendo para sempre a sua cor original, azul tempestade, esboroado, estalado, furioso, cheio de manchas de salitre.

Dr. Spock

A Joana Amaral Dias arranjou as sobracelhas.

Fecha-te Sésamo

O marido está finalmente despachado. Odete afasta-o com as mãos. Levanta-se com cuidado. Veste o robe que está aos pés da cama. Contrai os músculos do períneo a ver se fecha a abertura vaginal. Fecha-te Sésamo. Caminha até à casa de banho para se lavar. O percurso é longo. Os seus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão para que o impacto não provoque um derrame inesperado. À cautela, não vá escapar-se uma gota e salpicar o soalho que lhe dá tanto trabalho a encerar nas manhãs de sábado, coloca sempre a mão por baixo da vagina. Vai pelo corredor, o robe aberto, pisando a passadeira de linólio, os músculos do pavimento pélvico contraídos, as mãos rebentadas de picar alhos e cebolas a amparar qualquer fuga. Duas andorinhas de loiça esvoaçam nas paredes e, no seu nicho, uma nossa senhora de fátima padece numa luz triste, vermelha de lupanar. Quando finalmente se senta no bidé, suspira de alívio. Nem uma gota se perdeu. Sacoleja o corpo a ver se lhe arranca os resquícios que o marido lá deixou. Depois de lavada, veste umas cuecas de algodão e a camisa de noite. Volta para o quarto. Deita-se à bordinha da cama. Adormece.

2011/02/07

No cars go

Chuva

Era o tempo dos cisnes, dos patos, das folhas da árvore de borracha que cheiravam a manteiga, do Jardim do Torel onde viviam todos os bichos-da-seda da cidade, enrolados sobre si, alheios ao ruído e ao frenesim. Era o tempo dos sonhos. Adormecia e, na escuridão, apareciam árvores com copas cor de cobre, milheirais, precipícios, gigantes que tinham sempre o rosto meigo de um primo afastado que estava internado no Júlio de Matos. Também eu, por vezes, aparecia na escuridão da noite e dos sonhos. Usava socas e tinha as unhas roídas. Nesse tempo não percebia ainda o meu corpo. Sabia apenas que se apertasse as coxas com muita força, durante algum tempo, até ao limite da exaustão, o meu avesso, o meu lado de dentro, seria invadido por uma crescente onda de calor que, pouco depois, se transformava numa sensação única, a melhor que até então experimentara. Aquela sensação durava pouco, era um arrepio, uma vertigem, uma explosão, mas era de uma intensidade tal que valia bem o esforço físico que exigia de mim. Depois da exaustão e do prazer chegava um cansaço morno, muito bom, que me deixava o corpo adormecido e apaziguado. Fazia-o em segredo porque era uma coisa boa e, naquele tempo, todas as coisas verdadeiramente boas - mascar pastilhas elásticas, beber coca-colas, brincar no pátio, experimentar os sapatos de saltos altos da minha tia, enterrar as mãos na terra, pegar na minha irmã recém-nascida ao colo - eram proibidas. Fi-lo durante a infância e a adolescência. Sempre em segredo. Partilhava o quarto com a minha irmã. Esperava que ela adormecesse. Na escuridão, em vez dos gigantes e das árvores com copas cor de cobre, apareciam então mãos que percorriam o meu corpo com vagar e urgência. Nunca percebi se a minha irmã, aconchegada no seu sono, escutava o restolhar dos lençóis e os gemidos quase inaudíveis que, volta e meia, não conseguia calar. Só sabia que a minha escuridão era diferente da dela.

Durante muito tempo, uma eternidade, achei que era a única rapariga do mundo que me masturbava. Sabia que os rapazes o faziam. Falavam entre eles sobre o assunto, vangloriando-se, de modo um pouco absurdo, das raparigas que imaginavam enquanto se tocavam freneticamente. A masturbação (palavra proscrita naquela altura no universo feminino e agora também) era permitida aos rapazes porque era uma inevitabilidade da sua natureza. Revelava virilidade e mostrava o lugar que homens e mulheres tinham na ordem do mundo. Os homens masturbavam-se, as mulheres não. Ponto. O prazer que uma mulher sozinha arrancasse do seu corpo era pecado, era uma coisa muito suja, muito porca, sinal de desvario, de transvio. Cabia aos homens inaugurar a vida sexual das suas namoradas e esposas. Na verdade, devia ser assim porque eu não conhecia uma única rapariga que se masturbasse. As minhas amigas nunca falavam do assunto e faziam um esgar de sincero nojo se a palavra “masturbação” fosse pronunciada. Convenci-me, pois, que era a única rapariga do mundo que pensava em sexo. Esse sentimento de orfandade, de pária, de indigente, deixava-me num estado de inquietude e incerteza. Por um lado, cedia aos ditames dos bons costumes e achava que estava perdida. Lastimava a minha pouca sorte. Queria ser como as outras raparigas que viviam dentro de corpos mortos. Essas raparigas, já mortas, morriam todas as noites um bocadinho mais. Era assim que eu queria ser. A vida de uma mulher morta é um sossego. Às vezes, porém, dava por mim a achar que o meu segredo tinha um lado bom: a prática de tantos e tantos anos de masturbação havia de me tornar mais tarde numa amante eficiente e competente.

Percebi que era uma mulher normal, alguns anos mais tarde, quando vi o primeiro filme do Steven Soderbergh. Foi uma revelação. Afinal havia mulheres como eu, mulheres que gostavam de sexo e que não esperavam pelos homens para cumprir os seus desejos. Suspirei de alívio. Ainda por cima, as mulheres desse filme, são só duas, eram muito mais bonitas e interessantes do que aquelas com quem me cruzava no bairro e na universidade. Tal facto consolou-me. Apaixonei-me naturalmente pelo James Spader, o impotente. Ainda hoje, quando penso no assunto, acho que o parceiro ideal para mim devia ser assim, impotente. Mas isso são conversas que ficam para outra ocasião. Nesse verão pedi à minha mãe que me costurasse um vestido largo, tipo bata, com botões à frente, igual aos que a Andie MacDowell usa no filme. Acreditei que um dia havia de amanhecer perto de alguém a quem pudesse dizer “parece que vai chover” e que esse alguém saberia ler tudo o que essas palavras não dizem. Hoje, passados tantos anos, lido bem com o meu onanismo. Faz parte de mim. É uma competência. Uma espécie de qualificação.

Março 2010

(O meu filho João utiliza a palavra masturbação com uma naturalidade que me dasarma.)

2011/01/31

Sábado

Levo o Joaquim pela mão e percorro os corredores que, em criança, percorria com a minha mãe. A praça mudou de sítio. Antigamente, há muito tempo, ficava no meio do bairro, era um amontoado de toldos de lona e lagos de água suja. Depois, veio o progresso e a praça foi instalada num pavilhão que a câmara municipal construiu. A praça passou a ser o mercado municipal. Vou sempre à banca da D. Maria que gere o negócio com a ajuda dos dois filhos. O rapaz é um gordalhufo, mal disposto, um senhor patrão, de boina à banda, olhar ressentido. Descarrega a raiva que tem ao destino quando pega no facalhão para cortar talhadas de abóbora. A Sónia, a filha, é bonita e simpática. Uma jóia de rapariga. Há depois uma ajudante. Viúva, miudinha, é parenta, mas por afinidade. Vê-se pela magreza, pelo ar murcho. Trata das hortaliças. Avia as freguesas que querem nabiças, grelos, espinafres, agriões. Às vezes, aparece o Corneta, meio pateta, o cabelo oleoso colado à testa, óculos de fundo de garrafa. Anda às ordens da D. Maria, fazendo o que for preciso. Coça constantemente os testículos e gosta de contar anedotas ordinárias. Na semana passada, o Corneta fazia anos, não sabia quantos ao certo, e, em vez de responder às ordens da D. Maria, entretinha-se a oferecer galões, bicas e copinhos de bagaço a toda a gente. Acabei por ir com a Sónia ao café da praça. A dona do café tem um ar sujo e chora a ouvir o Tony de Matos. Agradeci o galão ao Corneta que arreganhou uma boca de dentes podres e escutei, durante cinco minutos, a Sónia queixar-se do ex-marido, que nunca pagou a pensão de alimentos ao filho, é um parasita, um autêntico estafermo. Ela a falar, eu a concordar com cada palavra, que sou muito boa no amparo. Despedi-me. Ela enfiou as mãos nos bolsos da bata, gritou um palavrão ao filho que por ali andava, e correu para a sua banca.

2011/01/28

Cancro

Air Pegasus

O juiz gosta de passear pelo bairro. Caminha devagar, não pondo na sua passada qualquer aceleração ou intuito saudável. Não pretende definir o seu corpo, torná-lo mais resistente, mais forte. Gosta de caminhar. Apenas isso. Nessas caminhadas, cruza-se muitas vezes com uma mulher. A mulher passa por si sempre a correr, vestida de licra negra, levíssima, ténis com amortecedores, o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Corre depressa e deixa um cheiro característico. Não é bom nem mau. É apenas o seu cheiro. O juiz olha-a. Um dia, a mulher levanta os olhos do chão. Também ela o observa. O juiz passa a desejá-la. Esse desejo consome-o, deixa-lhe o corpo dormente. Lembra-se constantemente dela, durante as audiências de julgamento, nas filas de trânsito, pela noite fora. Quanto mais pensa na mulher, mais se convence de que a não pode ter. Há entre eles um fosso intransponível. Ele caminha devagar. Ela passa sempre a correr. Essa discrepância parece-lhe insuperável. Uma mulher que corre não quer um homem que caminha.

Está quase a habituar-se à ideia de perder aquela mulher - é perito em perder o que nunca foi seu -, quando, certo noite, se cruza novamente com ela. A princípio, não a reconhece. Traz o cabelo solto, veste calças de ganga, calça umas sabrinas de cabedal. Caminha. O juiz percebe que ainda vem trôpega, como um vitelo acabado de nascer, as pernas bambas habituam-se ao peso de um corpo que se movimenta devagar. Em breve, caminhará como ele. Nessa noite, o juiz não consegue dormir. Qualquer coisa que o atormenta. No dia seguinte, mal sai do tribunal, compra uns ténis de corrida com nome de cavalo alado, uma camisola sem mangas, uns calções justos com forro térmico. Volta a cruzar-se com a mulher nos dias seguintes. Ela caminha. Cada vez mais segura. Ele corre. Cada vez mais depressa. As suas passadas continuam a ser incompatíveis. Uma mulher que caminha não quer um homem que corre.

2011/01/13

Branca

Branca não sentia prazer. Nunca sentira. Durante muito tempo achara-se diferente das outras mulheres. A idade, porém, trouxera-lhe serenidade. Apaziguara-lhe a frustração. Não só aprendera a aceitar a morte do seu corpo, como fazia questão de a usar em seu proveito. Cada vez que se envolvia com um homem apressava-se a contar-lhe o seu segredo. Depois de um estremecimento inicial, os homens compadeciam-se da sua sorte. Olhavam-na com pena. Branca revirava os olhos, batia as pestanas, alargava disfarçadamente o decote, pousava as mãos de cera no regaço, suspirava com brandura. Parecia uma santa. Sabia que a frigidez do seu corpo acicatava o desejo dos homens. Mesmo aqueles que a princípio pareciam não se interessar por ela, quando sabiam do seu padecimento, encontravam-lhe predicados e atributos.

Todos queriam salvar Branca daquele destino trágico e cada um deles, no seu íntimo, achava-se capaz de o fazer, cumprindo a sua vocação natural, usando de uma virilidade que julgavam eficaz e irresistível. Salvar Branca era a única oportunidade que tinham na vida de praticar o bem sem que lhes fosse exigida uma pontinha de sacrifício. Ela, porém, não tinha quaisquer expectativas em relação aos homens com que se envolvia. Dormia com eles para os observar. Desenvolvera capacidades apuradas de observação. Estudava-os como se de bichos se tratassem. Agrupava-os em categorias. Os homens davam-lhe sempre o seu melhor. Esmeravam-se no acto da cópula, esforçavam-se por a tocar nos sítios certos, faziam uso das mãos, suspiravam-lhe palavras ao ouvido. Falhavam sempre. Quando davam conta da sua derrota, ficavam inertes. Olhavam o vazio. Para muitos, era a primeira vez que o fracasso lhes aparecia tão nítido pela frente. O estremecimento inicial voltava. Sofriam. Não por Branca, mas por si próprios. No fim da noite, era sempre ela que os consolava.

Neighbourhood 1 (Tunnels)

(voltei a correr.)

2011/01/11

Aninhas

Amava o marido sem esforço ou preocupações. Ao amante, pelo contrário, estimava-o. Esmerava-se por lhe agradar. Acarinhava-o como se fosse uma criança pequena. Trazia-lhe as primeiras cerejas da época e comprava-lhe cigarros importados que largavam um fumo azul, adocicado, nos quartos de hotel onde se encontravam. Aninhas aplicava-se na traição. Sabia que o seu casamento dependia da estabilidade daquela relação. Quanto mais conhecia o amante, o romantismo insuportável que o fazia chamar-lhe meu amor, mais se consolava com a sobriedade do marido, a ausência total de afecto, o modo frio como lhe beijava o rosto.

2011/01/08

Saltykov-Shchedrin

Comprei um livro. Fui lê-lo para a igreja onde vivem os anjos da cidade. Não há melhor sítio para ler. A luz é suficiente, o ruído do mundo chega abafado e longínquo, cheira a madeira encerada. A companhia também é boa: a senhora que usa uma mantilha na cabeça e sapatos brancos, o homem que reza de olhos fechados e mãos abertas, a mulher que caminha na pontinha dos pés em sinal de respeito, abraão imolando o filho com um cutelo. Não lia há muitas semanas. O regresso à leitura encheu-me o coração de alegria. Até chorei. Coisa mais parva. É bom ler os clássicos.

Arkansas

Só alguns dias mais tarde apareceram as primeiras explicações nos jornais. O barulho dos fogos de artifício assustara os pássaros que descansavam nos ninhos. O rebentar simultâneo de milhares de foguetes, celebrando o novo ano, fizera-os despertar do seu sono palpitante. Segundo um especialista, as aves teriam tido um choque profundo, a explosão de ruído e luz provocara-lhes desorientação e cegueira. Alguns pássaros explodiram por dentro, sangraram pelos olhos; outros puseram-se a voar num descontrolo absurdo, batendo em chaminés, paredes, postos de iluminação, placards publicitários. Naquela noite, porém, ninguém encontrou razão que explicasse a chuva de pássaros e a multidão, que viera ao cais assistir ao fogo de artifício, emudeceu quando as aves começaram a cair.

Até que um homem se pôs a gritar que aquilo era um sinal divino, deus, zangado, anunciava o fim do mundo. Estava no livro sagrado. Uma mulher deu uma gargalhada, mangando da ignorância do crente. Desviou a objectiva das cascatas de luz e começou a fotografar o fenómeno, procurando o melhor ângulo para uma documentação credível. Um homem bonito, de olhos espessos, aproveitou a primeira agitação da multidão. Protegeu o rosto com as mãos e começou a abrir caminho na multidão. E se alguma ave, ao cair, lhe acertasse de bico, rasgando-lhe o rosto, marcando-o para sempre? Uma mulher gorda, que morava perto do cais, gritou ao marido que, na manhã seguinte, apesar de ser dia de ano novo, teriam de varrer o telhado e inspeccionar os algerozes. Só uma rapariga se comoveu com aquela mancha de morte. Apanhou um tordo que caiu aos seus pés e sentiu-lhe o corpo morno.

Noite

Durante a noite, a beira-rio enche-se de homens. Sentam-se nos bancos listrados junto ao rio a olhar a neblina que paira sobre as águas. Passeiam lado a lado. Raramente se tocam. O desejo, bicho nocturno, fica encoberto nas sombras. É preciso estar atento, olhar com muita atenção, para se dar conta dele. Os homens que andam aos pares gostam de se sentar ao lado dos outros homens que bebem gins tónicos nas esplanadas à beira-rio. Às vezes, sentam-se no restaurante francês que tem guardanapos de pano e onde se come batatas fritas e bifanas de porco à média luz. Ontem, um desses casais estava posto na vitrina do restaurante francês. Um homem jovem e gordo bebia vinho de um copo de pé alto como se fosse mulher, pondo a boca no rebordo, deixando-a estar nesse parapeito por breves instantes, humedecendo depois os lábios no líquido. O outro homem, esguio e careca, olhava-o e entumecia. Ao cruzar-me com esses homens que amam outros homens, que desejam outros homens, sinto sempre estranheza. Percebo o desejo de uma mulher por outra, mas estranho que um homem possa desejar fisicamente outro homem.

2011/01/01

Rebellion