2007/03/19

Brooklyn (2)

Hoje, pela manhã, no comboio, peguei novamente no livro. Por instantes deixei-o adormecido no regaço e observei as pessoas à minha volta. Ao meu lado, um rapaz negro, de pernas abertas, esparramado, inapropriadamente refastelado, lia um jornal de distribuição gratuita. À sua frente uma turista inglesa, encolhidinha, de dentes saídos, fazia um esforço por manter as pernas recuadas para não tocar nas do rapaz negro. Eu, ao lado, a topar tudo. A áfrica negra, provocatória, achando que a miséria lhe confere um estatuto de imunidade. O velho continente amedrontando-se, não querendo provocar os selvagens. Coitaditos, que já padeceram tanto. Não há pior forma de racismo do que a tolerância paternalista, que tudo justifica e perdoa. Retirar a responsabilidade a alguém é negar-lhe dignidade e, também, liberdade. A inglesa velha deveria pedir ao rapaz para encolher as pernas. Se ele se negasse deveria dar-lhe com a bengala na cabeça. É óbvio. Por mais que me cativasse o ar compungido da velha inglesa procurei abstrai-me. Abri o livro. Li. Voltei a Nova York e a Brooklyn. Foi então que deparei com a descrição do funeral de Harry, o estereotipo do malandrim gay, culto, velho, de picha pequena. Imaginei a cena. Rufus metamorfoseado de Tina Hoot irrompendo pelo funeral de Harry, vestida de negro, chorando. Imaginei-a cantando calada. Tão linda e jamaicana. Ao ver-me ali no comboio, com os prédios de Chelas a espreitarem pelas janelas, entre a inglesa encolhidinha, o negro malcriado e o travesti sentimental, foi-se embora a irritação. Senti a pele arrepiada e um nó na garganta. Sou uma sentimental. Da noite para o dia mudei de opinião. Gosto do último livro do Paul Auster. Limita-se a contar uma história, mas a verdade é que, como sempre, o faz muito bem. É que, como se diz por lá, enquanto uma história dura, a realidade cessa de existir. E isso é sempre bom.
(Texto escrito num berloque já assassinado. Lembrei-me dele a propósito da crónica de hoje da Helena Matos, no público, sobre Africa. Gosto muito da virulência da Helena Matos.)