2007/03/30

Raimunda

Não conheço a Raimunda. Nunca a vi. Sei que é brasileira e tem a pronúncia cerrada do nordeste. Conheço-lhe a história. Conheço bem os degraus do prédio que ela continua a esfregar com lixívia. Perdi a virgindade nesse prédio, deitada num sofá de cabedal, com os ruídos da rua a chegarem por uma janela aberta (como não detestar Sacavém?) Conheço também as pedras da calçada que, numa manhã de sol, se tingiram de um vermelho escuro e brilhante. Um rio de sangue saiu aos soluços de um corpo, numa ânsia de liberdade, fugindo da monotonia circular dos canais, das veias, das artérias. Correu pela calçada em direcção à pastelaria, chamou para a rua os clientes matinais que bebiam cafés, madalenas, bolos de arroz, pastéis de nata, dizendo-lhes “Corram! Lá fora, na calçada, está o corpo de uma mulher jovem. Foi golpeada pelo amante! ”. Não era o corpo da Raimunda que jazia na calçada. Era o corpo da amante do seu marido. Raimunda conheceu-a assim: morta no passeio em frente da Electro-Sacavém. História de folhetim. Possidónio e Raimunda. São nomes peculiares. Ecoam na minha cabeça pela sua estranheza. Caso os não conhecesse, duvidaria que fossem de gente de carne e osso. Mereciam uma vida de frases e silêncios.