2013/08/30

Malha metálica

Usa alpercatas roxas, calças de algodão descontraidamente arregaçadas, um fio de ouro com um berloque fluorescente. É uma mãe jovem, cheia de graça e entusiasmo. Conheço-a vagamente do portão da escola. A conversa sai-lhe diluviosa e o tom vai num crescendo de afectação nasalada. É extraordinário como é capaz de libertar uma quantidade tão grande de palavras. O ritmo é alucinante, quase mecânico. Nem por um segundo hesita. Talvez seja isto a capacidade demiúrgica do dizer. Ser capaz de falar assim parece-me uma proeza irrealizável, quase mágica. Mas, aos poucos, o ruído torna-se excessivo. A conversa obriga-me a um esforço de concentração: tenho de escutar, acenar a cabeça, responder, sorrir. A vida passa a ser insuportável e a realidade paralela, onde sempre renasço, desaparece lentamente. A mulher continua a falar. Passo a mão pelos borbotos da blusa e fixo os sapatos novos que comprei numa loja de calçado ortopédico. Enquanto noto o brilho encerado da pele maleável desejo que a mulher emudeça ou morra. Podia simplesmente pedir-lhe que se calasse, mas a minha cobardia tem raízes fundas, grossas como dedos, bastante poderosas e paralisantes. Nunca serei capaz de interrompê-la, tocar-lhe no ombro, explicar-lhe educadamente que preferia estar ali, em silêncio, em frente da carne morta na vitrina do talho, a observar o empregado vesgo encarregue de desossar uma perna de cabrito, um prodígio de brutalidade que, a cada novo corte, compõe o bivaque da farda ensanguentada e ajeita a luva de malha metálica.

2013/08/27

Slimane




2013/08/26

Caldo de cenoura

Acordei com a habitual sensação de vergonha e cansaço, picadas na mama esquerda, dores de cabeça e mau hálito. Deixei-me ficar sentada na cama a olhar a criança desconhecida que cavalga uma nuvem de fuligem. Durante a manhã, peguei no processo de um jovem médico, compulsivamente aposentado por sofrer de psicose delirante crónica. Senti-me aliviada por ter uma doença que, avançando com lentidão, me poupa do enxovalho social. Tenho-a há vinte anos, e, na maior parte do tempo, ninguém dá por ela. Ao almoço comi um caldo ralo de cenoura e encalhei na seguinte expressão: capacidade demiúrgica do dizer. Li-a na contracapa de um livro e não a compreendi. 

2013/08/25

Calor de Agosto

Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento, escorrendo pelas paredes, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a raiva não tivesse ardido como ardeu.

Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em silêncio e encontrou beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro, por causa do choro do menino, que tinha cólicas, mas, sobretudo, por causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali, na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém, explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.

(A última frase, lida há alguns anos num jornal, não me larga e, hoje, para o meu filho mais velho, para lhe mostrar a maldade de Deus, li uma passagem de um conto do Albert Cossery, o do barbeiro que mata a mulher.)

2013/08/23

Lésbica turca

- Estás horrível, mãe. Pareces uma lésbica turca.
- Sou uma lésbica turca. - respondo e, lentamente, começo a descolar as bordinhas do adesivo para lhe mudar o penso. 

(os mais velhos voltaram; a felicidade, por vezes, parece-me uma coisa bastante simples e alcançável.)

2013/08/22

Encontro feliz

Andava por ali, mole, espapaçada do calor, desinteressada, triste por sentir as calças de ganga ligeiramente apertadas. Estava já de saída quando, numa prateleira baixa, alinhados, descobri vários livros do Albert Cossery. Um encontro feliz. Li páginas soltas e, de imediato, escolhi três livros. Perto do balcão, desacelerei na espiral consumista: lembrei-me de que ainda precisava de passar pela perfumaria para comprar uma base de verão. Comprar três livros, mais uma base da dior, assim de uma assentada, pareceu-me um capricho, um devaneio perdulário, apetecível, mas revelador de destrambelhamento e desorientação. Decidi levar apenas dois livros, o das entrevistas (5 euros) e a colectânea de contos (12 euros). Ainda pensei em prescindir da base de verão, mas, na minha vida, a estética pesa tanto como a literatura e a frivolidade por enquanto fica-me bem. Percebi, no entanto, que desejava ter exactamente aquele exemplar de “Mandriões no vale fértil”. Não outro qualquer. É raro acontecer, mas, por vezes, dá-se uma espécie de magnetismo entre mim e certos livros. Deve ser uma sensação parecida com o amor à primeira vista. Há livros cheios de sedução fantasmagórica que parecem dizer-me assim: sou teu, és minha, leva-me para o teu quarto, toca-me com os teus dedos curtos de cutículas roídas, depois esquece-me nos entremeios dos teus lençóis. Não deve haver muita gente à procura dos mandriões do vale fértil. Tenho a certeza de que, deixando o livro na prateleira onde o encontrei, daqui a uma semana, um mês, um ano, voltaria a encontrá-lo no mesmo lugar. Mas, à cautela, não vá o diabo tecê-las e um qualquer parvalhão pegar nele, enfiei-o atrás de uma fila de livros técnicos, num canto escuro onde ninguém o encontrará.

2013/08/18

Maputo



Três da manhã. Li o primeiro romance “faceto”, o primeiro “frívolo livreco”, reli o segundo, tomei meio comprimido, bebi um chá de ervas muito quente que me queimou o avesso. Animei-me com a Custódia, a Pascoela, a Eufémia Tronchuda, a Felícia, esqueci até a irritação que me provocou a misógina comparação entre a Fêmea e a Política. Consolada, julguei a noite ganha, pensei que adormeceria rapidamente, esquecida do resto. Voltei porém a não conseguir adormecer. Dei voltas e voltas na cama. Chegou a espertina habitual. Pensei em mil e uma coisas. Em aulas de tango. No meu cabelo que não pára de cair. Na mulher de ancas largas desmerecendo um jovem escritor. No entusiasmo apopléctico, deslumbrado, cheio de tremores, da M. em relação a um outro que cheira mal dos sovacos. No cheiro da minha prima Filomena. No cheiro dos escabicidas. Em sudação animalesca. Nas contas que tenho para pagar. Em Dunquerque. Na Cornualha. No meu filho João, distante, provocador, cada vez mais bronco. Pensei também na primeira noite em Maputo. A noite quieta e o velho da bomba de gasolina dançando sozinho ao som desta canção. 

Leda

Voltei com o Joaquim. Fazem-me falta os outros. Passei o dia em limpezas, as minhas mãos estão cheias de cortes, a polpa dos dedos inchada. Cheiram a lixívia. Preciso de ter a casa limpa, gavetas ordenadas, roupas lavadas, as madeiras a cheirar a óleo de cedro. Deitei o Joaquim, mordi-o e lambi-o. Não jantei e bebi duas cervejas no estendal. Lembrei a conversa com a minha irmã. Contou que a Laurinda, depois do divórcio, bebia muito. Também bebo, bebo todos os dias, não muito, só o suficiente para largar a minha pele e fingir que sou outra qualquer. Despi-me para tomar banho. Vi-me reflectida no espelho do lavatório, nudez morna, corpo escuro, olhos borrados de khol, o cabelo solto, pensei no marroquino do café da aldeia, desejei que me visse naquele instante, a entrar no banho, mascarada de leda cigana.

2013/08/02

Conchanata

Havia sempre flores frescas nas jarras. O quarto estava limpo, arejado, perfumado. A cama feita com os meus lençóis preferidos. Na fruteira, em lugar de destaque, para que a visse mal entrasse na cozinha, uma papaia madura. Essas pequenas atenções da minha mãe amorteciam o desconsolo do regresso, faziam-me esquecer a liberdade das férias, longe da disciplina do meu pai e da preocupação excessiva da minha tia. Agora sou eu que preparo o regresso dos meus filhos. A Madalena volta hoje do estágio, chega no comboio das onze, frágil, bonita, com os dentes tão tortos. Passei a tarde a arranjar tudo para que se sinta feliz por voltar a casa, a nossa casa: comprei ramos de cravinas, obriguei o Joaquim a fazer um desenho colorido para embrulhar uma tablete de chocolate salgado, há bacalhau com natas no forno, figos no frigorífico, uma conchanata no congelador. 

2013/08/01

Pilriteiro

Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera, a árvore cobria-se de flores muito perfumadas e, no Outono, de pequenos frutos vermelhos que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a minha vontade de as trincar, explicava que tais frutos eram venenosos, certa vez até aparecera no hospital um menino, tão pequenino, muito doente por ter comido aquelas bagas. Depois, com rispidez, dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, perto do infantário, talhada em sebes vivas, também nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro das amoras maduras tornava as tardes de Agosto mais quentes. Sempre que via a tal arvorezinha chegava-me uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia no chão tal qual a Branca de Neve quando provou a maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, imaginava eu, pequena, unhas sempre roídas, passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, por temor, nunca desobedeci à minha tia. Apertava os pequenos frutos nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem uma polpa vermelha, dramática, sinal de paixão e doçura. Hoje, quando cruzo o parque da Fundação, ignoro os avisos para não pisar a relva e não apanhar flores e frutos. Apanho sempre meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do Centro de Arte Moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que as meterei à boca.

(Voltei a pegar no livro que, para além de castelos merovíngios, fala de pirliteiros e pirlitos. Cedo, voltarei a abandoná-lo.)