2013/08/30

Malha metálica

Usa alpercatas roxas, calças de algodão descontraidamente arregaçadas, um fio de ouro com um berloque fluorescente. É uma mãe jovem, cheia de graça e entusiasmo. Conheço-a vagamente do portão da escola. A conversa sai-lhe diluviosa e o tom vai num crescendo de afectação nasalada. É extraordinário como é capaz de libertar uma quantidade tão grande de palavras. O ritmo é alucinante, quase mecânico. Nem por um segundo hesita. Talvez seja isto a capacidade demiúrgica do dizer. Ser capaz de falar assim parece-me uma proeza irrealizável, quase mágica. Mas, aos poucos, o ruído torna-se excessivo. A conversa obriga-me a um esforço de concentração: tenho de escutar, acenar a cabeça, responder, sorrir. A vida passa a ser insuportável e a realidade paralela, onde sempre renasço, desaparece lentamente. A mulher continua a falar. Passo a mão pelos borbotos da blusa e fixo os sapatos novos que comprei numa loja de calçado ortopédico. Enquanto noto o brilho encerado da pele maleável desejo que a mulher emudeça ou morra. Podia simplesmente pedir-lhe que se calasse, mas a minha cobardia tem raízes fundas, grossas como dedos, bastante poderosas e paralisantes. Nunca serei capaz de interrompê-la, tocar-lhe no ombro, explicar-lhe educadamente que preferia estar ali, em silêncio, em frente da carne morta na vitrina do talho, a observar o empregado vesgo encarregue de desossar uma perna de cabrito, um prodígio de brutalidade que, a cada novo corte, compõe o bivaque da farda ensanguentada e ajeita a luva de malha metálica.