2006/06/30

Visconde

Ontem, na estação dos Restauradores, vi um homem cortado ao meio. Literalmente cortado ao meio. Como se, quando ele ainda era um corpo inteiro, o tivessem deitado numa maca, o tivessem medido, lhe tivessem traçado uma linha direita, separando-o em duas metades. A metade de cima e a metade de baixo. Depois, com cuidado, com minúcia e engenho, com um objecto cortante qualquer, uma tesoura gigante, o tivessem cortado ao meio. A metade de homem pedia. Alguém o deixara ali, encostado à parede da estação, perto da entrada para o parque de estacionamento, com um boné, onde se vislumbravam, baças, duas ou três moedas. Tinha o cabelo branco e uma barba bonita, branca também, e aparada. Vestia uma camisa limpa. As suas feições eram regulares, perfeitas e duras. O nosso olhar cruzou-se e fui eu que lhe fugi. Naquele homem, naquela metade de homem, havia ainda qualquer coisa de antigo. Tinha um ar quixotesco, ou calinotesco (Há quem diga que Cervantes baseou o seu cavaleiro andante numa personagem de Gil Vicente, Calinote. Mas isso são outras conversas para outro dia.) Dir-se-ia, pelas suas feições, pelo seu ar de tempos antigos, que o homem saíra de um quadro de Velásquez, ele que amiúde pintou, não metades de homem, mas homens com o tamanho de metades de homem. Quis ficar a olhá-lo, tal foi a surpresa, o encantamento, que aquele meio-corpo me provocou. Segui em frente. E lembrei-me do Visconde Cortado ao Meio, de Calvino.