Por culpa dele torci um pé. Tinha 18 anos. Era altura do Natal. Andava muito excitada por aqueles dias. Pela primeira vez, os meus pais autorizavam-me a passar o fim do ano sozinha, com um grupo de amigos. Uns dias antes, uma amiga oferecera-me uma cassete, preciosa, que ainda hoje guardo. De um lado gravara várias canções do "Escritor de Canções" do Sérgio Godinho. Do outro lado, outras tantas do "Por este Rio Acima". Ouvi esta cassete vezes sem conta, centenas de vezes, milhares talvez. As canções do Fausto punham-me num estado de euforia e felicidade. Despertavam em mim uma vontade desenfreada de dançar. Ignorando os olhares trocistas do meu pai e os gritinhos preocupados da tia Dé - ó filha, olha que tu cais! - punha-me a dançar as canções do Fausto, bem no meio da sala, sob o olhar severo das divindades hindus, trazidas da Índia. Mulheres serpentes. Homens com quatro braços e rosto de elefante. Ganesh, Shiva, Krisna, com os corpos esculpidos na madeira perfumada do sândalo, olhavam-me com espanto, não reconhecendo aquele dançar tão diferente do das suas terras longínquas. Era um dançar não contido. Não me limitava a abanar a anca ou a mexer os pezinhos. Não. Aquela música mágica entrava dentro de mim e fazia mexer todas as partes do meu corpo. Cheguei mesmo a aprender alguns passos de folclore que se adequavam perfeitamente ao ritmo daquelas canções. Foi num desses devaneios pela dança tradicional, entre saltos e pulos, com os bracinhos no ar, a dar uma pirueta, que torci um pé. Ainda me lembro das gargalhadas da mana, da aflição das minhas mães, do meu pânico perante a eminência de, por causa de um entorse, voltar a passar o fim de ano entalada entre os meus pais.
(Portugal não merece o Fausto. Merece a Marisa, insuportável, intragável, feia de morrer, sempre a fazer beicinho, a pôr-se humilde, a agradecer o reconhecimento, o sucesso, os discos de platina, os prémios, os poetas portugueses e sei lá que mais. Não posso com a mulher. É superior às minhas forças. Odeio-a.)