2008/04/03

Rua

Trabalho na rua mais feia da cidade. É sombria. Comprida como uma serpente. Os homens usam fatos baratos, compram revistas de automóveis e comem de boca aberta. As mulheres aproveitam as horas de almoço para arranjar as unhas. Pintam-nas de vermelho sangue de boi ou branco estrela-do-mar. Também gostam de passear nas lojas de utilidades domésticas onde escolhem molduras baratas fabricadas na China. Há muitos escritórios, repartições públicas, bancos, consultórios. Nunca chega o Verão a esta rua. Nem sequer quando se ouvem os sinos das igrejas. Nem quando a rapariga velha, de olhos feios, atravessa a passadeira ajeitando a saia de ganga. As árvores têm copas densas e lançam sombras que escurecem os prédios. De tão feia que é, a rua onde trabalho torna a minha pele baça, os meus dentes amarelos, os meus cabelos brancos, enchem-se as entranhas do meu corpo de musgo, verdete, bolor, líquenes, as minhas pernas incham, as veias estrangulam-se em nós invisíveis. Morro quando chego pela manhã e morro quando parto pela tardinha. Morro por saber que voltarei no dia seguinte. É lá, na rua mais feia da cidade, que me cruzo com o poeta. Traz sempre um jornal ou um livro por baixo do braço. O olhar é incerto e inseguro. Fixa as pedras da calçada. Não olha os homens, nem as mulheres, nem os automóveis, nem o renque medonho de árvores sombrias. Não levanta sequer os olhos para ver a rapariga velha, de olhos feios, atravessar a passadeira, ajeitando a saia da ganga, num gesto desastrado de sedução. Passa o poeta apressado, mal tocando com os pés no chão, para que a rua mais feia da cidade não o entristeça.
(sou tão depressiva que até irrita.)