2009/02/18

Compaixão (2)

Atrás, apoiada no ombro do homem, segue a mulher. Deixa-se por ele guiar. Como se também ela fosse uma passageira. Leva a bengala pendurada no braço e deixa-a arrastar pelo chão. Foi o barulho da sua bengala que me fez levantar os olhos do profeta que vive nos milheirais do sul. A mulher é feia. Usa o cabelo branco num alvoroço como se fosse uma medusa medonha e tem um buço escuro por cima de uma boca desdentada. Ao contrário do homem não esconde os olhos. Melhor seria se o fizesse. Os olhos dela assustam. São duas covas. As pálpebras parecem ter sido cozidas com linha preta por alguém demasiado egoísta, que lhe quis roubar o mundo, sobretudo, a luz.

Percebe-se, por alguns detalhes, que a mulher cuida do que veste. Busca uma certa harmonia, um certo atrevimento. Procura não ser diferente das mulheres com quem se cruza. Usa uma saia de veludo preto, justa e curta. Pela racha, que é grande, vê-se um pedaço da combinação branca. Calça uns botins de salto, já descambados, que acentuam o seu mancar. Caminha com as botinhas descambadas que lhe apertam os pés. É-lhe doloroso caminhar. Tola, a cega que quer ser igual às outras, é o que penso. Tola e ordinária. Tenho a certeza de que se a cega, de repente, pudesse abrir os olhos cozidos e olhar em volta se deslumbraria, em primeiro lugar, com o estilo porno star de algumas mulheres da plataforma: unhas quadrangulares de gel, calças enfiadas em botas de montar, extensões capilares, maquilhagem vistosa, a ondulação bamboleante dos rabos e mamas acentuada pela roupa demasiado justa. Só, depois, repararia no azul do céu e no verde das árvores da avenida. A cega também segura com a mão um cigarro que não fuma.

Mais do que o homem, é ela que prende o olhar de quem espera na plataforma. O doloroso mancar, o chiar da bengala, os olhos cozidos a linha preta, a combinação encardida espreitando naquela greta medonha, a sujidade encoberta, o cigarro ardendo nos dedos, tudo a torna repelente. Causa nojo e não piedade. O que incomoda e se estranha. Estamos habituados a dedicar aos cegos, como aos desgraçadinhos em geral, os pernetas, os manetas, os tolinhos, os imbecis, apenas a nossa compaixão. Dizemos “coitadinhos” e sentimos alívio.