Alguns colegas de liceu e de universidade começam a ser nomeados secretários de estado e chefes de gabinete. Um deles, o A., era o meu melhor amigo do liceu. Chamava-me Aninhas. Tratava-o por Rasputine. Passámos horas ao telefone a gozar com os nossos colegas, a apontar-lhes defeitos, a achincalhar os que chegavam na camioneta das oito. Os pobres vinham ainda ramelosos, estremunhados de sono, de Camarate, Unhos, Catujal. Traziam para a escola os hábitos e as modas dos subúrbios mais feios do concelho de Loures. Havia neles uma parolice ingénua, um certo deslumbramento pela periferia de primeira classe - era a nossa -, que nos espantava e deliciava. A tentação era grande. Criados na pacatez de um bairro de classe média, apesar da educação esforçada dos nossos pais, tínhamos aprendido pouco sobre o respeito pelos outros. Éramos parvos, mas invencíveis. Os melhores alunos. Os preferidos dos professores. Pertencíamos ao clube de teatro. Eu militava no PSR, queria fazer bem aos outros, mas só se outros, claro está, fizessem parte das minorias politicamente adoptáveis. O A. não se interessava por política.
Gozávamos com os nossos colegas de forma ruim e impiedosa. A Maria Alice, gorda e suína, a permanente sebosa sempre colada ao cabelo. A Céu, que queria ser actriz de teatro e, certa vez, ousou fazer um monólogo de Beckett. Não resistiu à primeira meia hora e caiu pelo monte abaixo. A Bé do Ó, esférica também, que odiava a nossa petulância e as nossas notas. Agora tem uma loja de utilidades domésticas. A Carla Lélé, feiíssima, muito burra, unhas roídas até ao sabugo, cuspia perdigotos pelos buracos dos dentes, mas insistia em ser modelo. Apareceu uma tarde no eterno feminino da Teresa Guilherme. De cá para lá, muito tola, passeando um vestido pingão. O rosto severo, fatal. Os lábios vermelhos, o cabelo ripado. Um travesti. Um travesti medonho. Pobre Carla. Nenhum carro pararia na rua Luciano Cordeiro para a levar. Nós, ao telefone, a rir à gargalhada. Mais uns anos e, desconfio, o A., será nomeado ministro de qualquer coisa. Triste, a passagem do tempo.