2010/10/11

Justine

Recordo. Encontrei, certa vez, uma sem-abrigo que lera o Quarteto de Alexandria. Muito magra, de cabelo crespo, baço, tinha os dentes podres da heroína consumida durante de muitos anos. Na altura, tive a tentação de escrever sobre aquela mulher que dormia na rua, mas tinha um passado de leituras, interesses, sonhos. Recordo com precisão o seu aparecimento: o restaurante argentino, as sobremesas montadas com aparato em pratos de faiança colorida, quatro mulheres desconhecidas falando das suas sessões de psicoterapia, o empregado servindo copinhos de licor de rosas, eu, farta de ali estar, a pensar nos meus filhos, na falta que me fazem, a fazer um esforço para articular palavras, para mostrar interesse naquilo tudo. Foi então que uma mulher se aproximou da nossa mesa e ofereceu a revista cais. Notando o livro que tirei da mala para alcançar o porta-moedas, a mulher explicou que lera há muitos anos o romance de Lawrence Durrel. Confessou que, dos quatro livros, gostara mais, muito mais, do primeiro, Justine. Os olhos brilharam-lhe com saudade de um passado há muito esquecido. Percebi, naquele instante, que aquela mulher era a protagonista da noite. Nós, as quatro desconhecidas, que dissecávamos relações e beberricávamos copinhos de licor, éramos meras figurantes. Tínhamos tudo – problemas, angústias, sofrimento, também - mas faltava-nos densidade dramática. Senti-me inexistente ao lado daquela mulher. Nunca fui capaz de escrever sobre ela. Não sei explicar bem porquê. Senti que se o fizesse estaria a retirar-lhe a dignidade que lhe restava, a comer-lhe a sua individualidade, a reduzi-la a uma categoria, a um estereótipo. Isso pareceu-me monstruoso.