2012/03/26

Aninhas e o olho-mágico

A campainha tocava por volta das duas horas. A Alzira interrompia a limpeza da cozinha, fechava a torneira do lava-loiças, panelas e tachos deixados num transitório descanso dentro da cuba de inox, limpava as mãos molhadas ao avental da farda, caminhava lentamente pelo corredor em direcção à porta. Quem é?, perguntava e sabia de antemão a resposta, ainda assim punha-se em biquinhos de pés a espreitar pelo olho mágico, a porta abria-se logo de seguida, faça favor de entrar, Senhor Doutor, a menina Aninhas já está no quarto à sua espera. Olhava-te a Alzira demoradamente, eras nessa altura um homem bonito, elegância trabalhada, ainda a podridão da velhice não te chegara, usavas fatos de dois botões, camisas brancas feitas por medida, botões de punho, um anel brasonado no dedo mindinho. Venha que levo-o até lá, depois, se quiser, posso arranjar-lhes um lanche. Davas-lhe uma pancadinha do braço para sentires a firmeza do corpo, gozavas em silêncio o atrevimento, deixa estar Alzira, conheço bem o caminho; metias-lhe uma nota de quinhentos escudos no bolso da farda, não vale a pena preocupares-te com o lanche, almocei uma feijoada à transmontana, ainda estou a arrotar a morcela e couve lombarda, e chegavas-lhe o rosto, boca aberta, para que ela sentisse no teu hálito a verdade do que dizias. A tua mão entrava então no bolso de renda pontilhada da farda, tocava o osso ilíaco, saliência tão estranha, onde se sente a finitude do corpo, espécie de cabo, lugar sombrio onde alguma coisa termina e outra começa; esse toque, breve, fazia despertar o seu corpo adormecido, o teu também despertava que uma empregada doméstica é sempre mulher de muita serventia.

Esperava-te no quarto. Escutava os teus passos e a tua aproximação, saber-te do outro lado, fazia crescer o meu desejo. Às vezes, tão grande era, fazia tremer-me. Tens frio, Aninhas?, dizias ao entrar e sem mais começavas a despir-me. Na cozinha, a Alzira tirava a nota de quinhentos escudos do bolso, olhava com desprezo a cuba de inox, deixava os tachos e panelas para depois. Ficava à coca. Apurava os sentidos, escutava com aprumo de tísica os ruídos, os estores baixando, as cortinas corridas, a chave rodando na fechadura, uma, duas voltas, porta fechada, sossego garantido para a explicação de matemática. O meu abandono, esse meu desfalecimento de presa fácil, dava-lhe ânsias de liberdade, estava certa de que o teu método de ensino era único, talvez a bissectriz e os números primos se decorassem melhor na escuridão, talvez o cálculo algébrico se apreendesse melhor na liberdade da nudez.

A Alzira ia até ao salão, abria o bar do móvel de mogno, enchia um copinho de aguardente de pêra. Esquecia a loiça, o arrumo da cozinha, punha-se à janela a gozar a vista o rio. Escorripichava o copinho de aguardente. Volta e meia dava estalinhos para aguentar a adstringência na língua, a aspereza que lhe corria pela garganta. Saías pela tardinha, pouco antes da chegada do meu pai, tão triste que ele ficava por nunca se cruzar contigo, tanto que queria agradecer-te a disponibilidade para me preparares para os exames finais, tenho de telefonar ao César, dizia, é um amigo do peito, amigo para a vida, estima-o muito, Aninhas, que como o César há poucos, o que ele nos tem valido depois da morte da tua mãe. A Alzira levava-te à porta. Cambaleava e tinha olhos de carneiro mal morto, era da doçura invisível da aguardente, levava os botões da farda desapertados para deixar fugir certos calores. Arfava. Um dia - bebera dois copos de aguardente que lhe trouxeram coragem -, à saída, explicou-te que não queria ser empregada a vida inteira, andava a estudar à noite, gostava muito de aprender, mas tinha muita dificuldade com a matemática, o Senhor Doutor, desculpe o atrevimento, também me podia dar explicações de matemática. Disseste que sim, era só combinar. Ela agradeceu, fechou a porta. Depois, elevou o corpo para te espreitar pelo olho mágico.