2012/03/03

Aninhas e a Muralha da China

Nos dias que antecederam a sua chegada, os idólatras trataram de arranjar credenciais para o escutar. O velho apareceu no primeiro dia para ser homenageado e, no terceiro, para falar numa mesa de gente distinta. Orelhas largas, totalmente calvo, a muitos pareceu um ex-heroinómano, anos seguidos de seringa enfiada na veia e garrote no braço. Uma jovem escritora que esperava vê-lo ainda composto, com meia dúzia de cabelos brancos e barba grisalha não aparada, ao vê-lo, pálido, cadavérico, gigante encovado, soltou um grito de espanto. Logo se controlou. Escrevera um primeiro romance, sensação da temporada literária, cheio de clítoris molhados e pachachinhas satisfeitas, tivera críticas jeitosas, tornara-se numa mulher emancipada, moderna e livre, de uma vez por todas tinha de se habituar a desmerecer o invólucro, apreciar apenas o ontos intelectual. O velho, do palanque, protegido pela paliçada da primeira fila, não notou a agitação da debutante. Levantou-se e começou a falar: domínio da palavra e do silêncio.

Um editor-crítico-escritor, três em um, espécie de santíssima trindade, ao escutá-lo, sentiu uma quentura galopante, abrasão que começou nas extremidades, pés e mãos, se espalhou por todo o corpo e, numa implosão inesperada, se concentrou no astro flamejante. Felizmente era dotado de um asteróide de reduzidas dimensões; hirto, teso, oclusivo, o seu pénis não era maior do que o seu dedo indicador. Olhou em redor. Apercebeu-se da comoção da plateia, uma matrona que conhecia vagamente, escritora também, de fiadas de colares tribais ao pescoço, fêmea erudita, aborrecida, feia e feminista, estava tomada pela emoção. O editor-crítico-escritor também gostava do velho, lera-lhe a obra de fio a pavio, gozava o momento como o resto da plateia. Porém, era a lembrança de certos pretos que apareciam nas suas histórias, generosos penetradores, que lhe entumecia o mini-pénis. A lembrança atiçou-lhe o desejo, sentiu o pequeno asteróide enchendo, enchendo, quando mais lembrava os pretos, seus mangalhos e doces cus, mais o desejo se acendia, tinha agora o asteróide inundado, temeu que entupisse. Com a sua delicada mão de conimbricense – é sabido, são delicadas as mãos de todos os conimbricenses - bateu ali mesmo uma punheta. Veio-se num instante, um revirar de olhos, estremecimento breve, e já está. Deixou-se estar a ouvir o resto da peroração, de cuecas molhadas, muito aliviado. O velho, lá do palco, continuava a falar, explicava que a loucura é requisito essencial à escrita literária.

A matrona das fiadas de colares tribais ao pescoço entrou em êxtase. Fechou os olhos e concordou com um meneio da cabeça, como que a dizer é bem verdade, nós, artistas, intelectuais, somos loucos, todos loucos, ai, louquinhos da silva que a normalidade é coisa de gente menor, dessa gente que se levanta às sete horas para ir trabalhar, paga as contas da luz e da água, que vai ao supermercado ao sábado de manhã e à bola ao domingo, que tem filhos e se basta com esse amor. O velho calou-se. A ovação foi enorme, duas senhoras que estavam na segunda fila, septuagenárias, sapatos ortopédicos nos pés, com ar de quem papa hóstias ao domingo e frequenta cursos de pintura a óleo para aprender a pintar paisagens marítimas, bateram palmas tão freneticamente que ficaram de mãos ardentes. O velho agradeceu. Saiu para o átrio, mas logo o rodearam como abutres: uns queriam dar-lhe uma palavrinha, outros mostrar-se íntimos, os puros queriam apenas agradecer a crueza da escrita, os mais atrevidos pediam para tirar uma fotografia, não se importa que tire uma fotografia a seu lado? e postavam-se de sorriso no rosto; o velho disse que sim, deixou-se estar, escutou o clique e sentiu que, apesar de ainda estar vivo, tinha em si a desoladora imortalidade das pedras: tiravam-lhe fotografias como se fosse a muralha da China ou as ruínas do coliseu de Roma.

O velho saiu. Caminhou durante algum tempo junto ao mar. No hotel, pediu as chaves na recepção e subiu ao quarto. No terceiro andar, o elevador parou e entrou uma mulher bonita, sulidão por todo o lado, pele morena e quente, narinas dilatadas como que a avisar do mau génio dos trópicos, cabelo preto caído pelas costas, olhos redondos pintados com khol. Sorriu-lhe. Gosto dos seus livros, explicou e, num gesto estudado, abriu o casaco de astracã, mostrando o corpo nu: peitos cheios, bons de abocanhar, mamilos que pareciam frutos delicados, bons de se chupar, pintelhada fresca e perfumada, caracolinhos negros como tições, bons de se cheirar. O velho agradeceu o vislumbre e passou os dedos ancilosados pelo corpo da mulher. Era, apesar dos livros que escrevera, um velho distinto, educado e conservador: sabia que uma mulher que se oferece assim merece pelo menos um afago.

(Em dada altura da minha vida, como a Aninhas, li muito o Rubem Fonseca: muitos livros e de enfiada, desejei ser apenas língua e orifícios. Tanta fartura causou-me certo desarranjo intestinal; andei, durante alguns dias, doente, pele macilenta, cheia de cólicas violentas, soltando gases e peidinhos, o intestino feito num oito, ora preso, ora liberto, bipolar. Até que, por fim, tive uma enorme descarga diarreica e limpei a tripa. Jurei para nunca mais apanhar barrigadas literárias, não se deve abusar dos escritores. Tal como não se deve abusar de gulodices. Aprendi a intervalar.)