2015/12/29

Fome

As compras do mês eram sempre feitas na CoopAbril, a cooperativa de consumo que ficava no Largo dos Anjos. O dia do avio mensal era um dia particularmente alegre na vida de cada um de nós. Era certo e sabido que eu e os meus irmãos ganharíamos alguma guloseima. A minha tia, responsável por elaborar a lista de compras, alegrava-se por, depois de tanta solidão, ter uma família. Até o meu pai se alegrava: perante a significativa poupança que fazia ao comprar na CoopAbril esquecia nesse dia (só nesse dia!) o seu ódio à revolução. Mas é a alegria da minha mãe que melhor lembro. Recordo-me de a ver empurrar o carrinho pelos corredores da cooperativa com um entusiasmo febril que se notava nos olhos risonhos e no desembaraço dos gestos. Desde o instante em que escolhia um carrinho sem rodas perras até à hora em que, empoleirada num banquinho, recebia das minhas mãos frascos, pacotes, latas e os arrumava nas prateleiras mais altas na despensa, a minha mãe sentia uma exaltação de conforto e bem-estar. Era, percebo-o agora, uma alegria de causa definida, essa que sempre lhe chegava no dia em que, com a longa lista de compras feita pela minha tia, seguia connosco para o edifício da cooperativa. É que nesse dia, sobretudo nesse dia, a minha mãe esquecia a vergonha da fome disfarçada que passou na infância. Olhando as prateleiras cheias, sabendo que não tinha de fazer contas à vida para comprar tudo o que precisava e não precisava, alegrava-se com a certeza de nunca mais voltar a sentir fome. Hoje, rondando o Largo dos Anjos, olhando a garagem onde, na minha meninice, ficava a CoopAbril, depois de me despedir do Tiago, dei-me conta que a minha mãe envelhece e que isso não me deixa triste.