2016/01/03

Sobrancelha esquerda

Comprei uma garrafa de vinho verde, um maço de cigarros e uma caixa de bombons recheados com licor. À uma da manhã, já tinha fumado metade dos cigarros e bebido a garrafa de vinho. Nem dei pelo ano passar. Foi por essa altura que comecei a sentir saudades do João Pedro. Fiquei num pasmo silencioso a olhar para a parede da cozinha, atenta à sujidade nas juntas, aos desenhos dos veios vermelhos no brilho lacado dos mosaicos. Depois sentei-me à secretária e escrevi-lhe um longo mail, cheio de palavras vulgares, frases vulgares, a dar-lhe conta do meu amor e explicando o que faria se o apanhasse na cama. Bebi um resto de vinho que tinha no frigorífico (acho que de pacote), fumei um cigarro e decidi deitar-me. Apesar de trôpega, fiz um saco de água quente. A minha cama é grande e não consigo adormecer com os pés frios. Despi-me e enfiei-me debaixo do edredão. Adormeci rapidamente. Às cinco da manhã, acordei com falta de ar. Levantei-me com dificuldade. Aos encontrões pelo corredor, caminhei até à cozinha para ir buscar a bomba da asma. Inalei três vezes, o suficiente para dilatar bem os pulmões. Vi-me reflectida nos vidros da porta, cabelo despenteado, nua da cintura para baixo, com a bomba da asma na mão. “És a mulher mais patética que existe à face da Terra”, pensei. Voltei ao quarto, já sem falta de ar, mas cada vez mais zonza. A meio do corredor, perdi o equilíbrio, caí no chão. Ao tentar amparar a queda, apoiei-me na estante. O gato de loiça, comprado em Jaipur, caiu da última prateleira. Bateu primeiro na minha cabeça e depois partiu-se no chão. Fiquei deitada, na penumbra, a dizer palavrões, triste por se ter partido o gato de loiça. Algo de muito violento explodiu dentro de mim e comecei a chorar aos soluços. Através da janela do quarto da minha filha, conseguia ver os prédios em frente. Numa varanda, debruçada no parapeito, uma mulher fumava. Ao vê-la, apenas um vulto, uma sombra, parei de chorar. Levei a mão à testa e percebi que sangrava. Voltei à cama. Acordei como acordo depois de noites de bebedeiras solitárias. Envergonhada, humilhada, mas, deste vez, com um golpe na cabeça. Um golpe aberto, mesmo por cima da sobrancelha esquerda.