2013/07/20

Aninhas e a flictena

Aninhas, nas noites de Inverno, enquanto esperava que o professor de semiótica ligasse, sentada em frente da televisão, acendia sempre um aquecedor eléctrico de resistências incandescentes. Costumava ter os pés frios e os dois filamentos cor de laranja, brilhando na escuridão, davam-lhe algum consolo. O lume é uma companhia, lembrava-se de ouvir a avó dizer quando era pequena. O pequeno radiador eléctrico, com as suas lágrimas de fogo contido, pousada aos pés, era um triste substituto dessas fogueiras. Fazia-lhe companhia.Mas deve ter-se cuidado com as companhias que as há perigosas. Uma noite, em que adormecera a ver um documentário sobre crocodilos, acordou com um cheiro intenso de borracha queimada. Deixara os pés demasiado perto do aquecedor e a sola das pantufas amolecia com o calor das resistências ligadas na potência máxima. Em vez de se descalçar, assustada, levantou-se com um salto. O peso do corpo pressionou os pés sobre as solas que ferviam. A pele ficou apenas superficialmente queimada, mas a erupção de uma flictena obrigou-a a estar sem andar durante alguns dias; deitada na cama, os pés cobertos com um creme gordo, entreteve-se a ler revistas de culinária para aprender a confecção de pratos que agradassem ao professor de semiótica. A epiderme acabou por cair, nasceu outra, dura e calejada e, por baixo do mindinho do pé esquerdo, no lugar da flictena, uma pequena verruga muito obstinada que, apesar da constante aplicação de adesivos com ácido salicílico, insistia sempre em nascer.