A
modernidade exige-lhe artefactos: usa fiadas de pulseiras, colares coloridos e,
quando ajeita o cabelo, mostra uma borboleta negra, tatuada no pescoço. É dada
a misticismos, vitalismos e esoterismos, acredita no poder da risoterapia, da
cristaloterapia e da cromoterapia, também pratica o reiki, o tai-chi e o
kung-chi. Demora-se a explicar cada conceito, cada modalidade. No seu entender, explica muito séria, a felicidade pode facilmente alcançar-se com mantras, meia-hora de meditação
por dia e uma alimentação livre de impurezas. Escuto-a sem a interromper. Tudo
aquilo me parece disparatado e até um pouco triste. Tanto cuidado na escolha e
acabo a falar com uma tipa que, rejeitando a tradição das suas origens, sem temer o
ridículo da desadequação, parece admirar apenas a grandeza espiritual de países
longínquos. Desprezo quem, encontrando nesse tipo de contemplação um sinal de mundividência, não se dá conta que tal apreço pelo
exótico revela apenas provincianismo. Que estúpida, que grande estafermo, penso. Com um entusiasmo quase
delirante, a rapariga põe-se a falar do espírito cósmico. A conversa
desnorteia-me, afasta-me cada vez mais do meu propósito. Sinto um
profundo desalento durante o resto da refeição. Tudo o que oiço me
parece despropositado, mesquinho, de uma frivolidade que me incomoda. Quando a rapariga se
levanta para ir à casa de banho volto a olhá-la. A maquilhagem procura diluir a
banalidade, boca apagada, lábios tão finos que mal se distinguem do
resto do rosto, olhos espantadiços. O corpo, porém, hipnotiza, formas preenchidas
no busto e quadril, a cintura marcada por um cinto de duas voltas. Fala de
espiritualidade, mas é apenas matéria. O palavreado místico é um véu enganador,
a carne é a sua vocação, o corpo funciona como a armadilha de uma planta
carnívora.