Pela manhã, ao
pequeno-almoço, li um conto da Katherine Mansfield. Nas primeiras páginas, a
escritora neozelandeza descreve o alívio que as mulheres de uma família inglesa
sentem quando Stanley, marido, cunhado, pai, filho, sai de manhã. Stanley parte
para o trabalho, leva o chapéu de feltro posto e a bengala que custou a
encontrar, Beryl, Linda, a velha Mrs. Fairfield, as crianças, Kezia, Isabel,
Lottie, ficam sozinhas. A casa volta a ser um lugar doce, tranquilo, feminino: as
mulheres aproveitam o fresco do jardim, notam os detalhes do mundo, tomam
banhos de mar, gozam o prazer de falar sem ter ninguém a perturbá-las. Até
Alice, a empregada, é atingida por essa inconveniente felicidade, lava a loiça na
cozinha, despreocupadamente, estouvadamente, desperdiçando água. “ Já foi? Já! Oh, que alívio, como as coisas
ficavam diferentes com o homem fora de casa. Até as próprias vozes pareciam
mudadas, quando se chamavam umas às outras; soavam quentes e cheias de ternura,
como se estivessem a partilhar um segredo”. Li este parágrafo, pela manhã,
no refeitório, e senti-me plena, estupidamente feliz. À noite, na cozinha, enquanto
picava alhos para temperar bifes e observava a torneira do esquentador (pinga
há mais de quinze dias, um pingue-pingue contínuo e silencioso), pensei
novamente no conto da Katherine Mansfield. De imediato, me aflorou ao espírito
o alívio que a minha mãe sente quando o meu pai parte sozinho para Goa. Os seus
olhos ganham brilho, às vezes, surpreendo-a a cantar pelos cantos da casa. Parece
uma outra mulher, alegre, tranquila. A minha mãe desfruta, com discrição, dessa
calma, mas, um dia, no quarto da tia Dé, depois de trocar a fralda ao João, levantou
os olhos e perguntou-me “Mas por que é
que eu me sinto tão bem quando o teu pai não está cá?” Logo a seguir, como
se temesse a sinceridade da minha resposta, baixou os olhos e começou a rir-se
nas momices do neto mais novo. A minha mãe não o confessa abertamente, mas,
pela alegria das conversas, pelo brilho dos seus olhos, é evidente que se sente
menos tensa quando o meu pai não está. Parece libertar-se de qualquer coisa que
a sufoca lentamente. No entanto, passado algum tempo, como se se sentisse
intimamente culpada por esse bem-estar, começa a insistir que tem de ir para
Goa. “Tenho de ir ter com o vosso pai”,
explica, “Não tem ninguém que trate dele,
a Ligorina só cozinha aquelas comidas condimentados que lhe fazem mal à pancreatite”.
É um discurso forçado, mas adequado à sua condição de mulher de setenta anos. Mete-se
sozinha no avião e vai ao encontro do meu pai. Fica por lá três, quatro meses. É
um tempo de profunda agonia e solidão. O meu pai ama a minha mãe, tem por ela um
amor antigo, comovente, mas isso não significa que cuide dela, que a abrace,
que lhe preste atenção. Passa os dias em bancos, repartições, conservatórias, serviços.
A minha mãe nunca o acompanha nessas andanças, fica na casa de Maina, sem ter ninguém
que a leve a Margão ou a Pangim. Penso nela muitas vezes. Como ocupará o tempo dessas
longas horas de solidão? De manhã, desce ao jardim, entretém-se a regar
as árvores de fruta e a apanhar folhas secas das roseiras. Pela tarde, senta-se no alpendre a ouvir as conversas da Fátima, indolente, preguiçosa, e
da tia Maria, má, feia, o olho cego de víbora sempre a largar uma aguadilha ramelosa.
Se lhe falta alguma mercearia, vai até à pequena loja que fica junto da igreja.
Volta a casa com um pequeno saco de plástico nas mãos, leva o corpo pesado do
calor, os seus chinelos pisam as vagens de tamarindo que cobrem a vereda do portão.
Arruma as compras no armário da cozinha, enfrenta novamente o silêncio. Às
vezes, a solidão da minha mãe torna-se incomportável. Telefona, choraminga, diz
não aguentar as saudades dos filhos, dos netos, da irmã. Desafio-a a meter-se
no avião e a voltar para perto de nós. A reacção da minha mãe é sempre igual. Emudece
o choro e, num tom firme, quase irritado, responde-me: “O meu lugar é ao lado
do teu pai”.