2014/03/04

Dezembro

A minha mãe sofre de depressão crónica. Eu também. Pouco antes de ela regressar a Goa, senti-me bastante em baixo, sem vontade de fazer nada, sem vontade de estar com ninguém. Dezembro foi um mês terrível. Passei dias inteiros na cama. Pouco comi. Não atendi o telefone. Entreguei os meus filhos aos cuidados da Graça. Deixei de ler, de correr, de escrever. Até de tomar banho e de lavar os dentes. Cheguei a pedir ao psiquiatra que me internasse. Ele fingiu não me ouvir e aumentou-me a medicação. Um dia, porém, consegui levantar-me da cama, vestir-me e arrastar-me até ao trabalho. Ao fim da manhã, olhando em volta, senti uma vontade urgente de chorar. É-me muito difícil aguentar o choro. Querer chorar e não o poder fazer é uma autêntica tortura. Ainda pensei em ir para a casa de banho, trancar-me no cubículo pequeno, sentar-me na retrete, fixar o recipiente dos pensos higiénicos, chorar com a cabeça encostada à parede de azulejos esverdeados. Porém, temi que a minha aflição não desaparecesse com um choro silencioso. Sempre que pressinto um choro incontido, muito aflito, corro à igreja de Nossa Senhora de Fátima, sento-me ao lado do altar a Nossa Senhora do Carmo, fixo os noventa anjos e choro na sua companhia. Mas, nesse dia, sentia-me tão em baixo, tão suja, tão incrivelmente miserável e cansada, que temi não conseguir caminhar até à igreja. Aguentei o choro durante mais alguns momentos, mas, assim que as lágrimas me embaciaram o olhar, desci à rua e apanhei um táxi. Comecei a chorar, encolhida no banco. O condutor do táxi, um homem jovem de rosto grosseiro, atrapalhou-se, “A senhora acalme-se, não chore, tem aqui um lenço!” foi dizendo enquanto me espiava pelo espelho retrovisor. Mal cheguei a casa dos meus pais, entrei no quarto da minha tia para que o Joaquim não se desse conta da minha chegada. A minha mãe rapidamente se apercebeu do meu desespero. “Não aguento”- fui-lhe dizendo numa aceleração de palavras – “Tenho medo de ficar sozinha, tu vais para Goa, o Reinaldo volta para França, eu fico sozinha com os miúdos e isso assusta-me, aterroriza-me”. Mergulhada nessa tristeza tão sombria, senti-me pela primeira vez na vida incapaz de tomar conta dos meus filhos. Chorei durante muito tempo, aos soluços, nos braços da minha mãe. Pedi-lhe que me abraçasse com muita força e ela abraçou-me. Gosto dos abraços que estrangulam. Continuei a falar no tom delirante que às vezes me chega. “Sabes, mãe, o meu pensamento foge sempre para aqueles pensamentos, faço um esforço, juro que faço, mas não consigo libertar-me”. A minha mãe escutou-me em silêncio. Por fim, explicou-me que por vezes também pensava em acabar com tudo, mas guardava sempre para si tais pensamentos sombrios, nunca os partilhava. As suas palavras desconcertaram-me, nelas encontrei a revelação da dimensão da sua tristeza, mas também uma subtil crítica, era como se me acusasse de imaturidade, como se me aconselhasse a sofrer calada, sobretudo a nunca incomodar os outros com a minha angústia. Recuperei  a calma. Deixei de chorar.