2008/04/20

Bifidus Activo (1)

Rafaela acordou cedo. Com um passo pesado dirigiu-se à casa de banho. Quando acendeu a luz os bichinhos, que tomam conta da escuridão, esgueiraram-se pelas frinchas do rodapé. Sentou-se na sanita de olhos fechados e boca aberta. Sornou baixinho enquanto um jacto de mijo amarelo, muito quente, afogou os seus sonhos nocturnos e a fez despertar. Enfiou-se na cabine do duche e lavou-se com um gel de banho cujo aroma era anunciado na televisão como sendo exótico e oriental. Era o cheiro das cerejeiras do Japão que o anúncio prometia. Rafaela não resistia à poesia da publicidade. Por mais que o marido a incitasse a comprar marcas brancas, enchia sempre o carrinho do supermercado com os produtos mais caros que a televisão aconselhava. Dos cereais de fibra com frutos secos aos toalhetes hidratantes para limpar o rabo, das águas minerais com sabores a fruta às bolachas maria com antioxidantes, a sua despensa era um regalo para os publicitários, técnicos de vendas, especialistas em promoções e talões de desconto. Rafaela era um alvo fácil. Muitas vezes imaginava-se a ser abordada na rua para falar das propriedades do último iogurte com bifidus activo. Havia de falar com segurança das melhorias que notara no trânsito intestinal e também no desaparecimento da sensação de inchamento.

2008/04/19

Ayaan Hirsi Ali


(A inveja é um pecado feio. Eu sei.)

Nojoud Nasser

Os holofotes estão virados para a crise interna do maior partido da oposição. Correm os comentadores às televisões e às rádios para nos dar a conhecer os seus palpites. São feitas listas de putativos candidatos. Este, aquele, aquele outro. Desmontam-se as intrigas palacianas que os baronetes urdem contra a arraia-miúda. E vice-versa. Todos têm uma opinião. Um supetão de remoques, vindos daqui e dali, dar-nos-á conta dos últimos desenvolvimentos. Os blogues enchem-se dos habituais comentários e de intermináveis discussões sobre o líder cessante e o líder vindouro. Num dia de tal afã na vida política portuguesa, ninguém se lembrará de Nojoud Nasser, a menina iemenita e da sua história. Aos oito anos foi entregue pelo pai para casar com um homem de trinta anos. Viveu um inferno. Foi constantemente espancada e violada. Pediu ajuda às tias, aos tios, primos, primas. Pediu ajuda à mãe. Viraram-lhe as costas. Foi sozinha ao tribunal onde expôs o seu caso. O juiz conta que se comoveu quando a viu chegar só ao seu gabinete. Acabou por decretar a anulação do casamento. Incomoda muita coisa nesta história. Não é tanto o vir mostrar, uma vez mais, o modo como o Islão trata as mulheres. Incomoda, sobretudo, o silêncio que se sobre ela se abate.

Red Shoes

Há qualquer coisa nos sapatos vermelhos do Papa que me perturba. Não sei bem o que é, mas, ao vê-lo de vestes brancas e sapatões encarnados, dou por mim a tentar adivinhar que tipo de roupa interior usará. Parece que estão muito na moda os slips Robert Cavalli. Acho que a Laurinda Alves podia escrever sobre tal assunto. É um tema aliciante. Mais interessante do que aqueles que costuma abordar. As crianças, os idosos, os doentes, as reclusas, os retiros, os doentes, a fé, a esperança.

2008/04/15

Mrs. Robinson


Senhorita

A menina da caixa, uma brasileira de pele leitosa, sardenta e sorridente, chamou-me senhorita. Quer café, senhorita?, foi assim que ela disse. E continuou, freneticamente, dedilhando a caixa registadora. Uma mulher, de óculos quadrangulares vermelhos e cabelo cor de palha, a quem a brasileira sorridente, momentos antes, chamara senhora, olhou-me com desprezo. Havia de ter cinquenta anos, por aí, e via-se, pela maneira de vestir e maquilhar, pelo cheiro do perfume que usava com parcimónia, que era uma mulher bem sucedida. Usava uma mala Furla cor de laranja e trazia o Currier Internacional debaixo do braço. O desprezo do seu olhar ficou a pairar durante vários segundos no ar. Depois enfiou-se pelos buraquinhos dos meus poros e preencheu o vazio que trago nos ossos.

(As mulheres não gostam mesmo nada de envelhecer).

2008/04/14

Democracia

Em Itália, um aldrabão, que pinta o cabelo de preto asa de corvo, useiro em subverter os princípios mais básicos da democracia, está prestes a ganhar as eleições legislativas. Em Portugal, um monstrengo de olhos esbugalhados, alucinado, trata os deputados regionais sem um pingo de respeito, chamando-lhes tudo o que lhe apetece. Há quem ache graça. Na Venezuela, um demente, aclamado por tantos, acha perniciosos os Simpsons e resolve substitui-los pelo mamalhame siliconesco da Pamela Anderson. A democracia é o melhor dos sistemas políticos. Mas presta-se a cada vexame.

Refém

A Manuela Ferreira Leite, em entrevista à Renascença, veio defender que o PSD, se ganhar as próximas legislativas, deve revogar a futura lei do divórcio apresentada pelo PS, aquela que acaba com o divórcio litigioso. Ainda bem que o PSD, anda moribundo, autofágico e, por isso, nem em sonhos ganhará as próximas legislativas. Confesso que não percebo o empenhamento de tantos na oposição à proposta do PS. A lei vigente prevê duas modalidades de divórcio, o amigável e o litigioso. Há casos, porém, que não se enquadram em nenhuma das duas situações. Não são carne. Não são peixe. São situações de indefinição, nas quais o cônjuge que pretende pôr fim ao casamento, quase sempre, atura o intolerável. O outro não assume que não se quer divorciar. Porém, escudado na tacanhez da lei, dificulta ao máximo a resolução do problema. Pior, muito pior, faz refém o cônjuge que se quer divorciar. O cônjuge-refém, digo-o com clareza e sem alarde feminista, é, quase sempre, mulher. Esta não sai de casa para que, em situação de litígio, não a acusem de abandono dos filhos e da morada de família. Esta não assume outra relação para que não a acusem de infidelidade. Esta continua, muitas vezes, a franquear a intimidade e a cama para que, na sala de audiências, não a acusem disto e daquilo. A não alteração da lei prejudica, penaliza, mói, maltrata, sobretudo, as mulheres. Não tenho dúvidas sobre isso. Que os homens o não compreendam, ainda vá que não vá. Os homens são como são. Agora que as mulheres assobiem para o lado ou adoptem um argumentário bolorento, é coisa que me chateia profundamente.

2008/04/09

Gatos Pretos

Gato Preto, Gato Branco / Emir Kusturica

Maria Eulália

Às vezes, quando o frio da madrugada lhe arrepiava o corpo, Maria Eulália abandonava as lonas e adormecia perto da fogueira. Era um fogo mortiço, de horas tardias, aquele que encontrava, um fogo molengão feito de brasas que já só palpitavam corações frágeis de quentura. Bastava, porém, a Maria Eulália a lembrança das labaredas iniciais para logo começar a sentir o corpo morno. Mal se levantava do colchão sentia os movimentos das crianças esticando as pernas, ajeitando-se no escuro, preenchendo o vazio que deixara. No tempo em que Pedro ainda estava dormiam todos naquela tenda. Dois adultos e cinco crianças. Os pais deitavam-se num colchão enquanto os filhos se ajeitavam pelo espaço que sobrava. Fabiana, a mais pequena, tinha um jeito estranho de dormir. Enroscava-se nas pernas do pai, agarrando-as como um náufrago se agarra ao mastro de um barco que se afunda. Adormecia sempre com uma expressão desesperada.

Quando Pedro estava com o clã Maria Eulália não sentia frio. Era um homem muito gordo e talvez por isso o seu corpo exalava ondas de calor que se espalhavam pela tenda. Mas agora, que Pedro não estava, custava-lhe adormecer. Por mais que se encolhesse, por mais que se encostasse aos filhos, o corpo não aquecia. Por isso fugia para perto da fogueira. Pegava numa manta, enfiava a pagela de Santa Sara na algibeira do avental e deitava-se lá fora, junto do fogo. Quando o velho acordava e a encontrava ali começava, de imediato, desfiando uma torrente de insultos. Aos gritos, para que as outras mulheres o ouvissem, dizia-lhe que não podia deixar as crianças sozinhas, que era seu dever cuidar dos filhos de Pedro, que ainda um dia acontecia uma desgraça, que quando essa desgraça acontecesse havia de a arrastar pelos cabelos e de a matar como uma cadela. O velho abria muito boca e os gritos que de lá saíam misturavam-se com um hálito podre de entranhas e morte. Maria Eulália escutava-o em silêncio. Não lhe explicava que apenas trazia o corpo para perto da fogueira. Não lhe explicava que, durante a noite, a sua sombra continuava nas lonas, deitada no meio dos filhos. Ao lado da sombra de Pedro.

(Ontem foi o Dia Internacional do Cigano. Lembrei-me dos ciganos dos filmes do Kusturica. Distantes e alegres. Lembrei-me do grupo de mulheres ciganas que, certa vez, se sentaram ao meu lado no comboio e me elogiaram as arrecadas. Lembrei-me da cigana mais bonita que conheci. O irmão retalhou-lhe o rosto depois de ter descoberto que ela dormira com um preto. Lembrei-me da menina espaventosa que subia a estrutura de madeira e me disse chamar-se Shakira Isabel. Lembrei-me da cigana da vista vazada que me persegue na rua mais feia da cidade para ler a sina. Lembrei-me dos rapazes do bairro social Alfredo Bensaúde, que se vestem como as estrelas do futebol. Movimentam-se em bando, para aterrorizar, assaltar e insultar os outros. Lembrei-me da minha tia Dé, olhando-os da janela e dizendo entre dentes “Lá vai a ciganagem!”)

2008/04/07

Julien Clerc - Ce n'est rien

(Ao ouvir esta canção, que adoro, percebo que nasci na década errada.)

Barreiro (2)

No passeio, em frente do restaurante e da loja, há quatro acácias. O sol incide sobre a folhagem e a luminosidade do dia torna-as especialmente bonitas. Sei que são acácias porque lhes reconheço a forma espraiada dos ramos. Fazem lembrar um postal que a minha mãe jovem mandou de África. Mostra um caminho de terra vermelha, ladeado por acácias enormes, cheias de flores roxas. Na parte da frente do postal, o roxo das acácias e o vermelho alaranjado da terra. Na parte de trás, a letra redonda, quase infantil, da minha mãe, dando conta da sua vida em África. Volto à praça que hoje encontrei no Barreiro. No meio da praça há um jardim. Um pequeno quadrado verde, bem tratado, com poucas árvores e muitos bancos, onde estão sentados vários homens velhos. Estão sozinhos apesar de estarem tão perto uns dos outros. Não falam, não jogam às cartas ou ao dominó. Estão completamente sós. É tão fácil estarmos sós no meio da multidão. Um fuma um cigarro, outro faz festas na cabeça de um cão amarelo que, tal como ele, tem também olhos tristes, outro coça a virilha, outro tem as mãos pousadas num jornal que não lê, outro observa as pessoas que passam. A praça tem um ar decadente. Faz parte de uma cidade onde já ninguém quer viver. Tem também um ar triste de abandono. É como se as pessoas com vida dali tivessem fugido, deixando para trás apenas os velhos moribundos de olhar triste e as velhas que fumam à janela. Esta praça faz-me lembrar um sítio onde já estive. Um sítio que guardo na memória, sem saber se o sonhei ou se o vivi. Se calhar é por causa das acácias banhadas de luz. Acontece-me muitas vezes. Lembro-me de locais, de ambientes, mas depois não sei se estive lá ou se apenas sonhei ter estado lá. A praça que vi aqui, no Barreiro, por uma razão que não sei explicar, fez-me lembrar Moçambique. Senti uma sensação estranha, um nó na garganta, como se já ali tivesse estado ou vivido.

(Começou a chover. As acácias do Barreiro já não estão banhadas de luz.)

Barreiro (1)

Estou no Tribunal do Barreiro. Enquanto espero que o Sr. Dr. Abílio acabe o julgamento do 1º Juízo, escrevo este texto. Abílio é nome de bicho, não de juiz. Se tivesse um lagarto, uma salamandra, uma iguana, um sapo comedor de moscas, chamava-lhe Abílio. Estou sentada numa mesa redonda, virada para uma janela que me mostra o rio e, ao fundo, um vislumbre pouco nítido de Lisboa. É a primeira vez que venho ao Barreiro. Calhou bem. Cheguei por volta das duas horas. Estacionei o carro num parque quase deserto. Dois homens de bigode, com gestos vagarosos, espreguiçando-se ao sol como lesmas, limpavam com flanelas amarelas o tablier dos respectivos carros. A caminho do tribunal, passei por uma praça que chamou a minha atenção. É uma típica praça dos subúrbios de Lisboa. Feia e pequena. De um dos lados da praça, os prédios têm cerca de três andares. Do outro lado, são maiores e têm uma cor indefinida, pardacenta, uma mistura de cinzento e amarelo. Em quase todos os andares os moradores optaram por fechar as varandas e fazer marquises com janelas de vidro martelado e caixilhos de alumínio. Vejo pessoas à janela. No quarto andar, está um rapaz, de robe, o cabelo em desalinho, a comer uma laranja. Deita, com descaramento, as cascas para a rua. Mais acima, uma mulher de cabelos cinzentos fuma. Do outro lado, no primeiro andar, uma velha debruça-se no parapeito para gritar com uma criança que passa na rua. Chama-se Fábio e a mulher que assim o chama é, quase de certeza, sua avó. Há roupa a secar nas cordas: calças, camisas, meias, cuecas, toalhas, lençóis. Num dos primeiros andares está estendido um cobertor verde alface que, pela exuberância da cor, dá nas vistas. Nas arcadas dos prédios mais altos, há um restaurante chinês e, mesmo ao lado, uma loja de bugigangas orientais, com duas lanternas de papel vermelho na entrada. Nos vidros da loja anuncia-se a pequenez dos preços. À porta, dois homens chineses conversam. Estão ambos de cócoras e, de vez em quando, abanam a cabeça. Dão gargalhadinhas nervosas e mostram fileiras de dentes feios. Estranho que estejam de cócoras. Na China, no Norte de África, na Índia, é habitual ver as pessoas naquela posição. Mas eles não estão China. Estão numa praça do Barreiro. O facto de estarem sentados sobre o próprio corpo, numa posição fetal, torna-os assumidamente diferentes, desenraizados do resto da praça.

2008/04/04

Coeurs


2008/04/03

Rua

Trabalho na rua mais feia da cidade. É sombria. Comprida como uma serpente. Os homens usam fatos baratos, compram revistas de automóveis e comem de boca aberta. As mulheres aproveitam as horas de almoço para arranjar as unhas. Pintam-nas de vermelho sangue de boi ou branco estrela-do-mar. Também gostam de passear nas lojas de utilidades domésticas onde escolhem molduras baratas fabricadas na China. Há muitos escritórios, repartições públicas, bancos, consultórios. Nunca chega o Verão a esta rua. Nem sequer quando se ouvem os sinos das igrejas. Nem quando a rapariga velha, de olhos feios, atravessa a passadeira ajeitando a saia de ganga. As árvores têm copas densas e lançam sombras que escurecem os prédios. De tão feia que é, a rua onde trabalho torna a minha pele baça, os meus dentes amarelos, os meus cabelos brancos, enchem-se as entranhas do meu corpo de musgo, verdete, bolor, líquenes, as minhas pernas incham, as veias estrangulam-se em nós invisíveis. Morro quando chego pela manhã e morro quando parto pela tardinha. Morro por saber que voltarei no dia seguinte. É lá, na rua mais feia da cidade, que me cruzo com o poeta. Traz sempre um jornal ou um livro por baixo do braço. O olhar é incerto e inseguro. Fixa as pedras da calçada. Não olha os homens, nem as mulheres, nem os automóveis, nem o renque medonho de árvores sombrias. Não levanta sequer os olhos para ver a rapariga velha, de olhos feios, atravessar a passadeira, ajeitando a saia da ganga, num gesto desastrado de sedução. Passa o poeta apressado, mal tocando com os pés no chão, para que a rua mais feia da cidade não o entristeça.
(sou tão depressiva que até irrita.)

2008/04/02

Figueiras


(O meu alentejo, de montes pequeninos, cheira à folha da figueira.)

Navegador Solitário

Por culpa dele torci um pé. Tinha 18 anos. Era altura do Natal. Andava muito excitada por aqueles dias. Pela primeira vez, os meus pais autorizavam-me a passar o fim do ano sozinha, com um grupo de amigos. Uns dias antes, uma amiga oferecera-me uma cassete, preciosa, que ainda hoje guardo. De um lado gravara várias canções do "Escritor de Canções" do Sérgio Godinho. Do outro lado, outras tantas do "Por este Rio Acima". Ouvi esta cassete vezes sem conta, centenas de vezes, milhares talvez. As canções do Fausto punham-me num estado de euforia e felicidade. Despertavam em mim uma vontade desenfreada de dançar. Ignorando os olhares trocistas do meu pai e os gritinhos preocupados da tia Dé - ó filha, olha que tu cais! - punha-me a dançar as canções do Fausto, bem no meio da sala, sob o olhar severo das divindades hindus, trazidas da Índia. Mulheres serpentes. Homens com quatro braços e rosto de elefante. Ganesh, Shiva, Krisna, com os corpos esculpidos na madeira perfumada do sândalo, olhavam-me com espanto, não reconhecendo aquele dançar tão diferente do das suas terras longínquas. Era um dançar não contido. Não me limitava a abanar a anca ou a mexer os pezinhos. Não. Aquela música mágica entrava dentro de mim e fazia mexer todas as partes do meu corpo. Cheguei mesmo a aprender alguns passos de folclore que se adequavam perfeitamente ao ritmo daquelas canções. Foi num desses devaneios pela dança tradicional, entre saltos e pulos, com os bracinhos no ar, a dar uma pirueta, que torci um pé. Ainda me lembro das gargalhadas da mana, da aflição das minhas mães, do meu pânico perante a eminência de, por causa de um entorse, voltar a passar o fim de ano entalada entre os meus pais.

(Portugal não merece o Fausto. Merece a Marisa, insuportável, intragável, feia de morrer, sempre a fazer beicinho, a pôr-se humilde, a agradecer o reconhecimento, o sucesso, os discos de platina, os prémios, os poetas portugueses e sei lá que mais. Não posso com a mulher. É superior às minhas forças. Odeio-a.)

Dalida and Alain Delon - Parole

2008/04/01

Mulher-Bomba

Com um sorriso nos lábios, a mulher vai relatando a sua história. As adúlteras, as divorciadas, as mães solteiras palestinianas são convidadas a se fazerem explodir para minimizar a vergonha que provocaram nas suas famílias. Explica que o martírio lava a vergonha imensa do adultério e do divórcio. Ela, mãe de uma menina, quis tornar-se mártir do seu povo e, por isso, ofereceu-se para morrer. Deram-lhe um cinto de explosivos, explicaram-lhe como funcionava o engenho e deixaram-na escolher a cidade onde queria morrer. Escolheu a sua cidade preferida. A mulher tem lábios dourados e usa um véu cor de areia que a põe feia. Continua a falar. O que nela mais espanta é o sorriso com que conta a sua história. Parece uma criança que confessa uma travessura: um chocolate de amêndoas roubado num supermercado, uma mentira contada para justificar um disparate. Quando o jornalista lhe pergunta pela razão que leva uma jovem mulher a se fazer explodir, ela volta a sorrir. Se aos homens prometem setenta e duas virgens, às mulheres nada se promete de concreto. É normal que assim seja. As mulheres não merecem a atenção de deus. Ela, confessa, pensou vir a ser uma das setenta virgens.

Amoníaco

A Marta Crowford, apresentada como sexóloga, escreveu um livro sobre o prazer feminino. Numa linguagem simples e acessível, era o que o Público dizia, dá dicas às mulheres portuguesas para que estas possam tirar mais prazer do coito. Por exemplo, para a prática do sexo anal aconselha a utilização prévia de um clister. Ajuda a limpar a tripa. Já no sexo oral, para evitar o odor indesejável a urina, que se acumula nos refegos do prepúcio e torna a glande pouco apetecível, aconselha a limpeza do falo do companheiro. Não sei. Mas acho que a Marta Crowford tem uma visão um bocadinho amoniacal do sexo.

2008/03/30

Turíbulo

O diácono foi um comunista feroz. Depois, não sei que lhe deu, converteu-se. Passou a ser um católico feroz. Tem um vozeirão grave que, por vezes, me assusta. E quando, muito sério, se envolve nas nuvens perfumadas do turíbulo parece um boi bafejante, resfolegando ruidosamente no altar. Acha-me bonita. Disse um dia que eu tinha uma beleza exótica. E enterrou-me os olhos na carne. Agradeci-lhe o elogio com um sorriso amarelo, amarelinho, e enfureci-me por dentro. Prefiro ser feia a ter uma beleza exótica.

Avenida do Uruguai

Tive uma tia, chamada Lucília, que se matou. Atirou-se do sétimo andar de um prédio de Benfica. Era uma mulher apagada, de silêncios prolongados, com uma vida aparentemente calma. Enviuvou cedo de um funcionário das finanças e, por isso, vivia com uma filha na Avenida do Uruguai. Tratava da casa, ajudava na educação dos netos, fazia as compras na praça, preparava o jantar. Sempre em silêncio. Coleccionava a teleculinária e deitava-se depois de ver a telenovela. As manhãs de domingo, passava-as no cemitério, tratando da campa do marido. Levava-lhe flores frescas. Cravos aninhados em nuvens fofas de gipsófila. Lavava o verdete do mármore com um paninho embebido em vinagre. Gostava muito de frutas cristalizadas. Quando a visitávamos no apartamento da Avenida do Uruguai, a minha levava-lhe um cartucho de frutas comprado numa mercearia de Moscavide. No dia em que se matou, fez uma canja de galinha e deixou os anéis em cima da cómoda, para que ninguém lhos tirasse. Sempre estranhei a sua morte por ser uma mulher simples, com uma vida simples, de hábitos simples. Não sei porquê, há em mim o sentimento absurdo de que a infelicidade e o desespero são prerrogativas dos sensíveis, daqueles que se ocupam da espuma, do supérfluo. Suicidam-se os escritores, os pintores, as poetisas. Os que esperam demais da vida. O suicídio exige um grau de sensibilidade, discernimento e sofisticação que a minha tia Lucília não tinha.

2008/03/26

Maria Bethânia - Reconvexo

Magenta

O Gustavo fez-me comprar um casaco magenta cintado que, com sorte, usarei depois da desova. Pôs-me também a ler “A Casa Grande de Romarigães”, do Aquilino Ribeiro. Gosto do Gustavo. Tenho um fraquinho por homens fracos, ainda mais desesperados do que eu, que se besuntam com a vergonha do falhanço, que choram, com lágrimas grossas, a amargura das suas vidinhas e que se amedrontam perante a liberdade e o alívio. Não tomam comprimidos suficientes. Erram a veia que cortam. Não enchem os bolsos de pedras quando se atiram aos rios e às lagoas. Gosto do Gustavo por, em tudo, sobretudo na tolice e diletantismo, ser parecido comigo. Só me aborrece que beba.

Compulsivos

Pior do que os leitores compulsivos só os leitores compulsivos de blogues.

Cérbero

Durante a adolescência interessei-me pelo Tibete. Li tudo o que me apareceu pela frente. Tirei notas num caderno de capa quadriculada que, mais tarde, no ramerrão das limpezas dominicais, perdi. Gravei os poucos documentários que passaram na RTP. Mostravam sempre caminhos de lama e janelas embaciadas que guardavam silêncios. Sublinhei, a lápis, a enciclopédia “Raças do Mundo”, comprada a prestações pela minha mãe no Círculo de Leitores. Os volumes, muito grossos, tinham lombadas verdes e destoavam, pela sobriedade, no meio do esparrame de memórias das viagens dos meus pais. Loiças de barro coloridas trazidas de Marrocos. Uma terrina de Limoges cheia de ramalhetes primaveris. Vidros coloridos de Itália. Latões cinzelados da Índia. Uma imitação de presa de elefante, minuciosamente trabalhada, comprada pelo meu pai a um guineense retinto na Baixa, ocupava lugar de destaque do móvel escuro da sala. Com o passar do tempo o meu interesse pelo Tibete desvaneceu-se. Ficou-me na lembrança o chá de manteiga de iaque, a poliandria fraternal e um sentimento vago de tristeza e desespero. A China aparecia-me, já nessa altura, nos primórdios da minha adolescência, como um monstro. Continua a sê-lo. Tornou-se, porém, numa criatura ainda mais medonha, um monstro de duas cabeças, que alia, num só corpo, o pior dos dois mundos.

2008/03/19

Yumeji's Theme

(dois homens aborrecidos falavam de livros na antena 2 e esta música surgia, atrás das palavras, como um murmúrio breve.)

Esmola

Um homem tira moedas de um saco de plástico e enfia-as nas caixas de esmola que se espalham pela igreja. As caixas são antigas, de madeira escura, com letras brancas a indicarem o propósito do gesto caridoso. Há-as para todos os fins. Para o culto. Para os irmãos necessitados. Para seminários. Para o jornal paroquial. Para a casa sacerdotal. Para o contributo penitencial. Há, também, uma caixa para as almas. É o que está lá escrito. Mesmo por baixo da ranhura onde se depositam as moedas e as notas, ao lado do cadeado, está escrito, a branco, “Almas”. Cada vez que o homem enfia uma moeda, os anjos dos vitrais largam as liras, as harpas, os violinos, e estremecem com o ruído que quebra o silêncio tumular da igreja. O homem pára. É então que um som cavo e arrastado surge das profundezas e fica a retinir nas paredes do templo. Ninguém parece estranhar. As mulheres que rezam o terço continuam a sua ladainha. O homem de bigode texano continua a rondar as velhotas de cabelo azul e violeta. A senhora da mantilha de renda branca, que se senta sempre na primeira fila, continua a contar a Deus as minudências da sua vida. Veio do mercado e as laranjas que traz no saco de plástico deixam no ar o cheiro invernoso dos laranjais do Arealão. As laranjas eram sumarentas, pouco doces e deixavam-me as mãos tisnadas. Olho, quieta, o anjo verde dos vitrais e lembro-me da prima Matilde, de lenço preto na cabeça, o xaile cruzado sobre a bata florida. Vivia perto dos laranjais, que cresciam em terrenos areentos, trazia no corpo entranhado o cheiro do fumo da lareira e tinha um filho, o Luis Carlos, rapaz moreno e bonito, dado a angústias profundas que, volta e meia, passava temporadas no hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Chamava-me priminha e eu gostava que ela me tratasse assim. Deixo os laranjais do Alentejo e volto à igreja onde habitam todos os anjos da cidade. O som cavo, medonho, arrasta-se por mais alguns segundos. São as almas penadas que lançam gritos desesperados das profundezas do purgatório. Exigem que o homem deposite algumas moedas na sua caixa. Só assim Deus poderá requisitar os seus processos ao celestial arquivo e reavaliá-los com vista a lhes franquear, ou não, a entrada no Paraíso.

(Na sua mensagem para a quaresma de 2008, o santo padre convida os católicos à ascética prática da esmola. E fala dos pobres. Ai, os pobres…)

Bacorinho

Lembro-me bem dele. Era sobrinho ou afilhado de um professor qualquer e isso conferia-lhe um estatuto diferente. Vinda dos subúrbios, debutando numa esquerda militante, muitas vezes levemente etilizada, olhava-o com certa distância e despeito. Nunca troquei com ele uma palavra. Sentava-se sempre nas primeiras filas do anfiteatro. Distante, calado, levemente seráfico, enfiado num pulôver vermelho, tirando notas. Loiro, de um loiro penugento, e anafado, fazia-me lembrar, já naquela altura, um bacorinho tenro, grunhindo para dentro as angústias de uma vida infeliz. Acho que escrevia com a mão esquerda. Não sei porquê. Imaginava para ele, como para todos os meus colegas, um futuro jurídico, brilhante e insuportavelmente monótono, e uma vida familiar regular onde não se confessariam afectos, não se admitiriam excentricidades sexuais, lambidelas genitais e outros devaneios, e os filhos se entregariam aos cuidados de uma empregada zelosa. Compadecia-me dele cada vez que o via atravessar os lúgubres corredores da faculdade de direito. Mais valia compadecer-me de mim.

(O Pedro Mexia foi, por sugestão do Bénard da Costa, o que, por si só, revela o seu merecimento e valor, nomeado sudirector da Cinemateca.)

2008/03/17

Bafio

Abro a porta. Apesar de terem passado poucos dias, sinto um cheiro estranho. É um cheiro bafiento, velho, de naftalina e humidade, parecido com aquele que o tempo deixa nas roupas que estão guardadas nas arcas de madeira que existem nos corredores das casas das nossas avós. Arcas ornamentadas com desenhos embutidos de gueixas submissas, levemente idiotas, que passeiam entre pinheiros e riachos mansos. Por cima dessas arcas há sempre um naperon de linha grossa e um mostrengo, em forma de jarra, cheio de camélias ou rosas de plástico. As avós guardam nessas arcas a roupa branca dos seus enxovais: toalhas de linho com aplicações em croché, lençóis bordados a ponto pé de flor, toalhas de rosto com monogramas e raminhos de azevinho bordados a ponto cruz. São peças que bordaram com infinito vagar quando eram novas e que guardam para ocasiões especiais que nunca acontecem. É o cheiro dessas arcas e dessas roupas que encontrei ao entrar hoje aqui. Sinto esse cheiro nas palavras que escrevi, alinhavos dos meus dias. Deambulo pelas divisões. Leio alguns textos. Salvo uma ou outra excepção, acho-os insuportavelmente pretensiosos, maus até. Uma merda. Como este que agora escrevo. Graças a Deus sempre fui boa na arte da auto comiseração. É um facto. Volto a sair. Fecho a porta.

Sombra

Estou numa casa que não é minha. É uma casa muito grande. Fica no coração da cidade. Deambulo por uma sala rectangular feita de recantos e nichos. Os candeeiros de mesa têm abajours de franjinhas. Lançam pedaços de luz frouxa pela sala. Caminho até uma estante que cobre, de alto a baixo, uma das paredes. Olho para os livros que se amontoam nas prateleiras. Invejo esta sala, esta casa e esta imensidão de livros. Caminho na direcção do terraço. Há algumas cadeiras e espreguiçadeiras espalhadas. A cidade espalha-se em casas baixas que se encavalitam umas nas outras como peças indisciplinadas de um dominó. O casario é branco. Aqui e ali, vejo abóbadas. As ruas são sinuosas e esconsas como as de uma medina árabe. Ao longe, recortado pela cidade, obediente e manso, vê-se o mar. Já vi este mar noutros sonhos. Até já o experimentei. Já entrei nele. Como se entrasse dentro de alguém. No meu sonho Lisboa tem mar. O caudal do rio aumentou. Inchou. Furioso, galgou a outra margem. De um trago, engoliu as terras do sul. Transformou-se em mar. Encheu-se de sal. Serenou. Deixou-se habitar por sardinhas, medusas, cavalos marinhos, carapaus, robalos. Há uma quietude morna derramada por todo o lado. Não se ouve nada nem ninguém. O dia morre. O crepúsculo tem cor e cheiro. É alaranjado. Cheira a hortelã, a peixe seco e a fruta madura. Melancias, figos e laranjas. Lisboa é o que não é. Ou é o que já foi. Ou o que poderia ter sido. Uma cidade de deserto e mar. Preenchida por abóbadas, cata-ventos, minaretes, fontes de água fresca e praças de sombras. Estou dentro do sonho, no terraço desta casa, que não é minha, e penso: quero ficar aqui, para sempre, suspensa neste tempo e neste lugar.

2008/03/14

3


La Donna Gravida, Rafael

Mar

Já me apanhei várias vezes a afagar a barriga e a escrever o nome completo da criança que nunca viu o mar. Sou uma grávida velha e patética.

Corações na Penumbra

Ao serão, vi o Corações na Penumbra, filme baseado numa peça do Tenesse Williams. Às tantas, grogue de paixão, o Paul Newman diz que o mundo se divide entre as pessoas que sentem prazer quando fazem amor e as que não sentem prazer quando fazem amor. É um chavão insuportável.

2008/03/12

SG- Lisboa que amanhece

(as dádivas da noite nunca são eternas.)

PSD

O caldo entornou-se. Os cavalheiros tiraram as luvas e dão tabefes com a mão aberta. Os dedos ficam marcados no rosto. As críticas feitas pelo Rui Rio, pelo Pacheco Pereira, pelo António Capucho são graves, fundamentadas e directas. Responderam, do outro lado, com sobranceria e a falta de educação própria dos que chegam ao poder sem saber muito bem como ou porquê. A guerra foi declarada. É melhor assim. É preferível a guerra aberta às guerrilhas partidárias que se fazem em surdina, por corredores e bastidores, manipulando este e aquele, congregando esforços, pedinchando apoios. O confronto, aberto, permitirá clarificar posições, definir estratégias, gizar alternativas. Nada poderia ser pior para o PSD do que continuar a viver num clima de paz podre em que a mediocridade do líder, e dos seus cães de fila, se desculpa, a cada disparate, pelo facto de ter sido legitimamente eleito. É um embaraço cada vez que o Luís Filipe Menezes abre a boca. É um mal-estar constrangedor cada vez que o Santana Lopes aparece nos telejornais em périplos pelo interior do país. O clima de paz podre, em mim, fazia crescer o medo de ver o PSD tomado por um exército de Marcos Antónios, todos iguais, de óculos rectangulares de massa, barba de três dias, corte de cabelo duvidoso, insuportáveis na sua falácia política.

Folhado de salsicha

Logo pela manhã, ainda os bolos se apresentavam frescos nas vitrinas, falava a Lurdes da cafetaria com a menina Fátima da farmácia sobre a situação interna do Benfica. Dizia a Lurdes, que tem a voz baça, engrossada pelo fumo de milhões de cigarros, que o problema não é o treinador, até podia vir o Mourinho, nem os jogadores, o problema é a cambada de dirigentes que não tem uma política de rigor para o clube. Enquanto falava, a Lurdes manuseava com uma pinça os folhados de salsicha, dispondo-os em pirâmides, mesmo ao lado das empadas de galinha e das meias-luas de legumes. Via-se, pela tensão acumulada nos cantos da boca, rija, tesa, como um pedaço de cortiça, que a crise do Benfica a perturbava ao ponto de a fazer trocar os pedidos. Trouxe-me uma torrada aparada em vez do pão com manteiga que lhe pedi. A menina Fátima, que é belfa, escutava-a em silêncio, tão feia na sua bata branca, admirando o conhecimento profundo da outra sobre os assuntos da actualidade desportiva. Eu, se fosse uma mulher de coragem, saltava para o outro lado do balcão, amarrava a Lurdes com o fio cor-de-rosa que usam para atar as caixas dos bolos de aniversário e enfiava-lhe um folhado de salsicha pelos gorgomilos abaixo.

2008/03/09

Cansaço


Lucien Freud, Ib and her Husband (1992)

8 de Março

Pela vida, habituara-se a ver mulheres cansadas, estava farto de mulheres cansadas, até por não compreender a assustadora capacidade de se concentrarem em várias ocupações simultâneas e de violentarem o corpo até à exaustão”.

A Sala Magenta, Mário de Carvalho

Supérfluo

“No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então de me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira a minha avó. Nesse em tudo estava o sexo. “Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.”

O Espartilho, Lygia Fagundes Telles

(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel na vida, no casamento e na cama. Teria evitado os pregos que trago enterrados na carne. Isso de uma mulher se achar no direito de ser feliz na vida, no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, percorrer as divisões, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, ajeitando as jarras de frésias e rainúnculos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)

2008/03/06

007

Acordei sobressaltada com um barulho de rua. Não consegui voltar a adormecer. Pus-me a puxar para fora o sonho interrompido. É uma tarefa delicada. A partir da última imagem consigo reconstruir um sonho. É preciso paciência. Ir puxando o sonho delicadamente com uma pinça, roubá-lo às catacumbas escuras onde dormita e trazê-lo para a luz. São animais estranhos, os sonhos. Deitada na cama, vou olhando as imagens com atenção, procurando pormenores e detalhes, cheiros e cores. A certa altura aparece-me a imagem do meu pai. É normal o meu pai aparecer-me nos sonhos. Só que, desta vez, o meu pai é o James Bond. Eu estou apaixonada pelo meu pai. Não é bem paixão. Sinto-me, isso sim, sexualmente atraída pelo meu pai. Este sonho não tem nada de especial. É banal. Por isso mesmo me aborrece. Tem um significado comezinho: projecto nos homens, por causa da pila, do falo, do pénis, a imagem do meu pai. E é por essa razão que sinto culpa durante o acto sexual. Que miséria. Que falta de originalidade. Pelo menos, podia sonhar-me sexualmente atraída pela minha mãe, pelo meu hamster soviético ou pelo abominável António José Seguro. Mas não. Tinha de me sonhar sexualmente atraída pelo meu pai. É triste ser-se em estereótipo psicológico.

2008/03/05

Paul Simon - You can call me Al

Estearina

O Mariano Rajoy diz que reza quase sempre à noite e tem permitido a vergonhosa intromissão da igreja na campanha eleitoral espanhola. O Sarkozy pretende dar protagonismo às religiões, dizendo que “uma moral laica corre o risco de se esgotar quando não está apoiada na esperança que colmate a aspiração do homem ao infinito”. Quem é este palerma para falar de moral? O nosso Paulo Portas ainda não entrou nesta cruzada dos homens de bem, que confessam papar missas dominicais e ficar consolados com o cheiro a estearina das igrejas. Porém, volta e meia, também faz um ar compungido e finge que crê em Deus. Acredita quem quer na fé de pechisbeque destes homens. Perante a ameaça de um conflito civilizacional, em que um Ocidente laico se confronta com um Islão fanático, certa direita empenha-se em defender os valores matriciais europeus. Fá-lo, como sempre, da pior forma. Abdicando dos princípios basilares que, até ver, nos tornam melhores do que o resto do mundo: a laicidade do Estado e a defesa incondicional dos direitos do homem.

Pacheco Pereira

O Pacheco Pereira foi director do Público por um dia. Tenho um fraquinho pelo Pacheco Pereira há muitos anos. Gosto da inteligência e da frontalidade com que escreve e fala. Gosto sobretudo do uso que faz da liberdade. Há poucos homens livres. Gosto também de certa arrogância, do modo como encolhe os ombros e sorri quando o Jorge Coelho, sibilando as palavras, justifica cada gesto, cada política, cada opção, cada traque que o primeiro-ministro dá. Gosto do Pacheco Pereira mesmo quando discordo dele. E gosto da barba, do cabelo revolto, da gargalhada certeira, da pancinha, do olhar irrequieto. Se eu não fosse uma mulher de respeito, casada e mãe de dois filhos, atirava-me aos pés dele e jurava-lhe amor eterno.

Natureza

Nos jardins da fundação ouvem-se rãs. Há colmeias nas colinas de Chelas. Vejo uma fiada delas quando o comboio atravessa o vale. As hortas que ficam na beira da linha enchem-se de faveiras e ervilheiras. As alfaces desabrocham como rosas gigantes entre ruínas de gente e prédios de papelão. Os pássaros do meu bairro acordam de madrugada, numa algazarra primaveril que me faz chorar ao acordar. Acontece-me o mesmo com o som dos sinos. As manhãs são bonitas e claras. O rio enche-se de medusas e tainhas que se alimentam do lixo das águas. A natureza é linda.

Escápulas

Uma mulher de casaco azul, que escolhia laranjas, fez-me parar em frente da frutaria da avenida. O casaco era de um azul profundo, muito intenso, e envolvia-a da cabeça aos pés, aconchegando-lhe o corpo pequeno. Velha, usava os lábios finos esborratados de vermelho e o cabelo era fofo e branco como enchimento de almofadas. Nos pés trazia uns sapatos rasos de verniz branco. Um homem assomou-se de dentro da loja e cumprimentou-a. Reparei que tinha a pele muito vermelha e que o couro cabeludo estalado lançava pedaços de dermatite seborreica pelo pulôver azul-escuro. Pesou as laranjas e continuou a falar com a mulher do casaco azul. Olhei-os com a certeza de que seria incapaz de comprar e comer aquelas laranjas. Cada vez que metesse à boca um gomo havia de me lembrar das caspas gigantes do homem da frutaria. Despediram-se. Quando a mulher do casaco azul começou a andar ouviu-se um chocalhar de ossos. Um ruído estranho, de ossos secos, ocos, sem tutano, ossos mortos, batendo uns nos outros. Reparando no meu espanto, a mulher abriu o casaco azul e mostrou-me um esqueleto de ossos quase translúcidos, rendilhados e porosos, muitos certinhos e ordenados. Disse que ainda tinha medula nos ossos planos, sobretudo nas escápulas. Pronunciou a palavra “escápulas” muito devagar. Mastigou cada sílaba, mostrando-me os dentes certinhos da dentadura. Estavam manchados de baton vermelho. Es-cá-pu-las. Depois sorriu, fechou o casaco e continuou a andar.

2008/03/02

2008/02/29

Marjane Satrapi

Também fui ver o filme da Marjane Satrapi. A sala estava cheia. Apinhada de gente. Fiquei sentada ao lado de duas lésbicas. A lésbica inteligente passou o tempo a explicar à lésbica burra as minudências do filme. Até lhe explicou que Teerão era a capital do Irão. Insuportável, a lésbica inteligente. E riam muito, as parvalhonas. Com o seu riso exagerado, gargalhadas alarves em catadupa, queriam mostrar aos restantes iluminados que ali estavam que também percebiam a subtileza das piadas, a ironia do humor simples e inteligente. Esclareço: não sou homofóbica. Longe disso. Sou só muito democrática nas minhas embirrações.

Darjeeling Limited

Fui ver o Darjeeling Limited. A sala estava vazia. Eu e a minha solidão numa sala vazia. Coisa tão triste. Lembrei-me do atropelamento do João a caminho de Corturim perto da Roxane´s laundry. Procurávamos um riquexó que nos levasse a Benaulim. Íamos na beira da estrada, o João saltitando aos meus pés, como os gafanhotos dos verões da minha infância. E depois foi atropelado. Apesar de tudo, apesar de me ter morto por breves instantes, a Índia continua linda. O Adrien Brody também. Tem uns pés maravilhosos. Pés do herói indiano Sri Rama. Vi-o banhar-se nas águas verdes de Banganga e tinha uns pés assim.

Público

Vão perguntar ao Miguel Esteves Cardoso o que odeia no Público. Eu não sou o Miguel Esteves Cardoso. Mas respondo à mesma. Odeio as crónicas da Laurinda Alves à sexta-feira. Não percebo como é que lhe dão uma página inteira para discorrer sobre cuidados paliativos e grupos de oração. Odeio também um dos novos cronistas do P2, um tal de Kalaf Ângelo, que usa chapéu de coco. É um chato que acha que ser moderno e cosmopolita é sair à noite no bairro alto, jantar em restaurantes japoneses, fazer compras em mercados biológicos e frequentar lojas gourmet em busca de vinagres balsâmicos. Odeio, por fim, o facto do Público não ter uma secção de mensagens eróticas decente. Uma miséria. O Diário de Notícias bate aos pontos o Público nesta matéria. Lá se encontram as brasileiras com peitão XXL do Barreiro e os travestis, activos e passivos, da Ameixoeira. Uma variedade geográfica e descritiva invejável.

Sacavém

Houve um homicídio em Sacavém. Um toxicodependente matou os pais e depois suicidou-se. Vinha no jornal. Sacavém é terra de inquilinos comunistas que pagam rendas de 20 euros por casas que já não habitam - uns porcos, uns porcalhões, no dizer da minha sogra senhoria - e de gente sanguinolenta. Até a guarda é violenta em Sacavém. E também lá vive um serial-killer. Ainda há-de dar que falar. Noite fora, quando não está a retalhar corpos, escreve contos bukowskianos, monótonos, cheios de palavrões e africanas boazonas. Não gosto de Sacavém. Perdi lá a virgindade.

2008/02/26

Alaúde

Descia eu a avenida entretida a olhar os plátanos jovens, que já se cobrem das primeiras folhas, quando topei com uma colega do liceu. Estuguei o passo. Tudo nela continuava a transpirar a tristeza da sua adolescência: a permanente feita para dar corpo ao cabelo ralo, os dentes encavalitados a afunilarem-lhe o rosto, a insuportável monotonia dos castanhos no vestir, o castanho-escuro da saia a destoar do castanho-azeitona do casaco e do castanho outonal dos sapatos, o mesmo olhar de bicho assustado, que se esbofeteia sem remorsos e sem piedade. Tinha um pai autoritário que deixava papelinhos amarelos espalhados pela casa a lembrar as obrigações de recato, decência e empenho, próprias de uma rapariga da sua idade. Deixei-me ficar a olhá-la. Pouco depois, ainda eu me aninhava no conforto da maldicência, vi passar, do outro lado da avenida, um magnifico rabo com forma de pêra, descomunal, enorme, farto em carnes descaídas. A dona do rabo bamboleava apressadamente as nalgas, espartilhadas numas calças de ganga muito justas, afastando-as para longe de mim. Atraem-me os rabos grandes em forma de pêra, em forma de alaúde. É a atracção pelo grotesco do corpo. Acontece-me o mesmo com a magreza extrema das anoréticas e a feiura excessiva de certos pés. Hesitei entre seguir o rabo em forma de pêra ou deixar-me ficar ali a olhar a minha colega do liceu, tão pindérica no seu sobretudo castanho-azeitona. Tanto hesitei que, quando olhei em busca do rabo gigante, já não o vi. A vida está cheia de decisões difíceis que, muitas vezes, nos exigem rapidez e segurança. Sou incapaz de tomar tais decisões. Fogem-me os rabos em forma de pêra e o resto também.

2008/02/24

Charles Aznavour-Il faut savoir

Il faut savoir

Depois de jantar, deixámo-nos ficar à mesa a beber uma garrafa de vinho tinto e a fumaçar os gauloises do Manuel. Ela colocou o Charles Aznavour no leitor de cds. Obriguei-a a repetir vezes sem conta o “Il faut savoir”. Quando o Manuel chegou, enfiado no anorak de forro xadrez, que conheço dos tempos em que ele era apenas meu patrono, sorriu. Disse qualquer coisa do tipo “as manas já estão alegrotas!”. Estávamos. A alegria da minha irmã deu-lhe para dizer, com ar pateta, que adorava o Sr. Frazão, colega de trabalho. A minha alegria deu-me para falar de sexo anal com o meu cunhado enquanto ele comia fatias de pão besuntadas de um queijo amanteigado. Gosto do Manuel. E eu nem sou muito de gostar de pessoas. Desprezo, genuína e autenticamente, quase toda a gente a conheço. O Manuel é a única pessoa que conheço que é capaz de falar, com interesse, sem dissimulação ou pedantismo, com qualquer pessoa e sobre qualquer assunto. Não há muita gente assim. Tanto fala sobre as guerras púnicas e a Anna Magnani como fala sobre futebol e técnicas de masturbação.

(Ainda bem que não fui ao concerto. Estava lá o Herman José com uma camisa cheia de tachas douradas.)

Domingo

Aos domingos, enchem-se os centros comerciais de homens sós e tristes. Trazem pelas mãos crianças que olham em silêncio. Dão-lhes sandes, gelados, gomas, copos de coca-cola, compram-lhes baldes de pipocas, levam-nas ao cinema. Às vezes, quase nunca, abraçam-nas para sentir de novo a mornidão dos seus corpos tenros. Entregam-nas ao final do dia às mães que as esperam para por fim à solidão que chega de quinze em quinze dias.

Geni e o Zepelim

As pessoas vivem amorfas e tristes por serem incapazes de questionar as três relações importantes das suas vidas. A relação com a morte. A relação com os filhos. A relação com a sexualidade. Mas coisa, menos coisa, foi isto que ele disse. Quanto ouvi tal panaceia, estremeci. É que eu questiono tais relações e nem por isso sou mais feliz. Quando o faço percebo que falho em todas elas. Falho na relação com a morte por cobardia e intermitência. Falho na relação com os filhos por excesso. Falho na relação com a sexualidade por tudo. E também dá-se amiúde aos velhinhos sem saúde e às viúvas sem porvir… Quem assim sabiamente falou foi o Eduardo Sá, o homem da voz feita de coisinhas boas, que, ao final da tarde, vira os dias do avesso com a Isabel Stillwel na Antena 1. Uma outra vez, já há algum tempo, dei por eles a discorrer sobre sexo e prazer. Segundo o Eduardo Sá, só há prazer, verdadeiro prazer, quando, numa relação de total confiança e comunhão, se penetra da superfície da pele ao fundo da alma. Desliguei o rádio e deixei-me ficar em silêncio a roer as unhas até o sabugo rebentar. Depois corri à cozinha em busca der uma faca de serrilha, suficientemente afiada e dolorosa, para cortar os pulsos. Escorreu sangue por todo o lado. Vi-me aflita para limpar as nódoas do tapete que está por baixo do lava-loiças.

2008/02/22

2008/02/19

Paquistão

Há, entre os Bhuttos, uma mulher de que pouco se fala. Chama-se Fátima. Jovem, extraordinariamente bonita, com um rosto longo, tem a altivez própria das rainhas antigas. Neta de Zulfikar Ali Bhutto e sobrinha de Benazir, critica abertamente o sistema de dinastia política que impera no partido da sua família, o PPP. Diz, e com razão, que nenhuma democracia se pode construir com tão frágeis fundações.

Cuba

Quando se reformou do banco a primeira viagem que o meu tio Alberto fez foi a Cuba. Veio de lá maravilhado. Não eram só as praias, as mulatas, os mojitos e a música. Gabava sobretudo as maravilhas de um socialismo consolidado: o nível de instrução da população, os cuidados médicos, as escolas, o espírito solidário das pessoas. Quando me atrevi a falar-lhe da miséria do povo cubano, tratou de me olhar com a displicência própria da sua geração - que, como não se cansa de lembrar, fez o 25 de Abril - e logo a imputou ao embargo americano. A verdade é que a esquerda nunca escondeu a sua admiração pelo regime cubano. Atribuiu ao seu líder carisma e fez dele um herói da luta anti-americana. Assobiou, vergonhosamente, para o lado cada vez que apareceram notícias sobre os presos políticos, a censura, sobre os ataques à liberdade de expressão, sobre o sistemático desrespeito pelos direitos humanos. Os povos oprimidos só merecem a solidariedade da esquerda se a sua desgraça puder, de alguma forma, ser atribuída aos americanos. Os outros povos esquecem-se. A esquerda é perita em gerir solidariedades e apoios. Veja-se o caso do nosso José Saramago, homem tristemente preso no seu redil, incapaz de apertar a mão ao presidente Cavaco, mas tão fiel ao amigo Fidel. Só descobriu que Cuba era uma ditadura quando o regime não conseguiu esconder a execução sumária de três homens que procuraram na incerteza do oceano a liberdade que não podiam encontrar no seu país. Esta esquerda, bacoca e senil, sente hoje uma mágoa, um aperto no peito, um não-sei-quê de sincera ternura, perante a anunciada retirada de Fidel Castro da chefia do Estado e das Forças Armadas de Cuba. E continua a gritar “Socialismo ou morte! Hasta siempre comandante!" É estranho. E profundamente triste.

2008/02/18

Chuva

1) Esta noite, enquanto lá fora ribombavam trovões e o céu se desfazia em pingos grossos de chuva, sonhei com o Francisco José Viegas. Tinha carapinha de caracol solto, o que o favorecia, mas não sabia fazer filhós. Punha-lhes demasiada farinha, era avaro na aguardente e, decididamente, não sabia sovar uma massa. 2) Anda um carro de bombeiros na minha rotunda. A mulher do quarto andar do prédio em frente ligou outra vez o gás. Há um bombeiro empoleirado numa escada gigante. Os transeuntes formam pequenos grupos. Hoje, porém, é um péssimo dia para se suicidar. O aparato é menor. Da última vez, vieram três carros de bombeiros, dois da polícia e vários do instituto nacional de emergência médica. 3) Espero que a chuva tenha arrastado o serial killer de Sacavém. Dizem que as águas se amotinaram por lá, galgaram ruas e passeios, esbulharam estabelecimentos comerciais e casas, deixando um mar de lama por todo o lado.

2008/02/14

Fausto Bordalo Dias

Feira Nova

Vivemos numa época em que a vida se leva como se fosse um anúncio de telemóvel. É obrigatório estar preenchida com conversas animadas e com muitos amigos circunstanciais, com quem jantamos ocasionalmente para falar de filhos e viagens a países distantes, recomendáveis pelos spas dos hotéis e também pelos nativos risonhos e subservientes. Num tempo assim, atafulhado de alegrias e encontros, a tristeza não se confessa. Não se murmura sequer. A tristeza embaraça. Gosto do meu marido por ser a única pessoa a quem posso ligar a meio da tarde só para dizer que estou triste. Estou triste, digo-lhe e o bocal do telefone enche-se de papoilas, flores efémeras, e de borboletas negras que adejam, frágeis, antes de morrer. Ele consola-me com silêncio e um alfarrábio agustiniano que encontra numa venda de rua e me entrega quando chego a casa. O livro, bafiento, cheira ao restolho húmido dos campos de inverno, aos toros de oliveira queimando devagar nas fogueiras, aos rios caprichosos do norte. Cheira à vida e à morte dos outros. Vem o livro embrulhado num saco de plástico do feira nova e esse pormenor, sei, não o hei-de esquecer. Entre as folhas, traz dois postais amarelos do Rio de Janeiro, escritos, numa letra inclinada, por uma mulher chamada Maria Adelaide.

Gesto

Haviam de decepar as grávidas que passam a vida a afagar as barrigas. É um gesto de insuportável lamechice. Pensam as pobres que o amor a um filho nasce assim, num instantinho, de repente, por dá cá aquela palha, só porque a cópula foi bem sucedida e um feto lhes saracoteia no ventre. Só amei os meus filhos, só tomei consciência de que era amor que lhes tinha, muito depois de os expulsar do corpo.

2008/02/11

Teresa Torga

Mandela

Tive o primeiro diário aos doze anos. Tinha uma chave pequenina, de dentes muito recortados, uma capa nacarada, feiíssima, com uma princesa barroca, dançando alegremente num jardim de arbustos. Lá confessei os pecados de criança, a noctívaga compulsão masturbatória, a chatice rotineira do ciclo preparatório, as precoces discussões com o meu pai que, volta e meia, me enchia de sopapos por eu falar mal do Salazar. Um dia, já não sei a que propósito, resolvi fazer uma lista dos meus heróis. Lá estão: Jesus Cristo, Bryan Adams, Luther King e Nelson Mandela. A ordem, suponho, foi aleatória. Sempre que releio aquele diário, o primeiro, sinto um certo constrangimento, uma vergonha miudinha que me cobre o corpo e me faz enrubescer as faces. Não tenho, porém, vergonha dos dislates juvenis que lá escrevi. Nem sequer renego o amor pelo Bryan Adams. O que me embaraça é a caligrafia redonda de adolescente. A letra de imprensa em detrimento da letra manuscrita, que aprendi a desenhar, elegante e cuidada, com a professora da primária. Pior, em cima do cada “i”, a fazer de pinta, uma enorme bola, muito redonda, muito gorda, muito insuportável. Uma vergonha.

(Em 1990 um dos meus heróis, de menina e de sempre, foi libertado. Descobri nesse dia que se podia chorar de emoção e de alegria e que era bom. Faz hoje 18 anos.)

Obamamania

O meu pai é indiano, a minha mãe é portuguesa, o meu irmão é negro. Eu sou tricolor, branca, castanha, negra, porque herdei também o breu do meu irmão. As questões da raça e da discriminação sempre as senti na pele como minhas. Vem este intróito a propósito do crescente e histérico frenesim que se tem gerado à volta da candidatura do Barak Obama. Dizem os seus apoiantes que ele é uma lufada de ar fresco, que herdou os dotes de oratória do Luther King, que é capaz de galvanizar as multidões, que recolhe o apoio do clã Kennedy, que é negro e, por ser negro, a sua eleição poderá significar um sinal de mudança e tolerância no mundo. Tamanho disparate dá-me cabo dos nervos. Não gosto de dinastias, desconfio sempre da eloquência dos discursos e acho que escolher um presidente por ser negro é pior do que rejeitá-lo pela sua cor.

2008/02/06

Under My Thumb-The Rolling Stones

Ácido Muriático

Expliquei o meu problema à senhora da drogaria: o cheiro que fugia dos canos e se espalhava pelo apartamento como uma gaze invisível, o cheiro que, logo pela manhã, me afagava o nariz, com mãos pútridas, e me fazia correr à casa de banho para vomitar os sonhos da noite. Escutou-me a senhora da drogaria em silêncio e aconselhou-me ácido muriático. Muito velha, falando de olhos fechados, explicou as vantagens do ácido em relação à soda cáustica. Atrás dela, que me pareceu uma feiticeira cheia de sabedoria, uma pitonisa capaz de resolver os mais intricados enigmas do mundo, prateleiras carregadas de detergentes e diluentes. Mal cheguei a casa corri à casa de banho. Abri o ralo e deitei o líquido para matar o bicho dos canos. Ouvi gemidos de agonia. Tal como avisara a pitonisa da drogaria o cheiro desapareceu imediatamente. Milagroso, pensei. E meti a garrafa do ácido à boca. Fervilharam-me as goelas e o corpo ardeu-me por dentro.

Melena

A direita despreza o seu estilo, a sua pronúncia, os tiques chavianos de apontar o dedo aos ricos e poderosos. Colhe os aplausos de certa esquerda, que aprecia o estilo trauliteiro, truculento e inconsequente. O Carlos Magno, que é seu amigo (mas de quem é que o Carlos Magno não é amigo?) assegurou no Contraditório da Antena 1 que o novo bastonário pensa muito no que diz. Fiquei mais sossegada. Há, porém, duas coisas que me inquietam. Uma é que o homem que acusa a justiça de ser fraca com os fortes e forte com os fracos diga que a investigação levada a cabo no caso Casa Pia pretendeu a decapitação do partido socialista. Parece que, no caso Casa Pia, o bastonário, como quase toda a gente, está mais preocupado com os fortes do que com os fracos. A outra é o penteado. Agora que é bastonário, em vez do lustro untuoso da brilhantina, que lhe dava uma certa graça de merceeiro, cai-lhe, revolta, uma melena sobre a testa. Estremece a melena cada vez que levanta a voz.

2008/02/05

Swarovski

A Rafaela fez extensões e colocou unhas de gel. Foi a prenda de Natal que pediu ao marido. Agora, para além da banda gástrica, tem um mar de coisas postiças pelo corpo. Hoje, pela manhã, caiu-lhe uma unha perto da fotocopiadora. Foi uma aflição. A gente ouvia-lhe os gritos pelo corredor, pedindo que ninguém pisasse a sua rica unhinha. Quando finalmente a encontrou, voltou para a secretária, tomou um calmante e ligou para a manicura, uma brasileira chamada Débora, que mora na Brandoa. A Débora, pelo que percebi, é especialista, não só na colocação de unhas de gel, mas também na decoração das mesmas. Explicou que era normal o decesso das unhas de gel, que, mais cedo ou mais tarde, as marotas partiam e davam lugar às verdadeiras, tão insignificantes, autênticas e rosadas. A Rafaela acalmou-se e disse, juro que disse, que já não podia viver sem unhas de gel. Fez marcação para colocar novas unhas, desta vez incrustadas com cristais swarovski. Eu estremeci. Mal posso esperar.
(não suportaria o tédio da minha vida sem esta mulher.)

2008/02/02

La Saraghina-Fellini's 8½

Candidaturas bicéfalas

Com as devidas distâncias, a Hillary Clinton, ao permitir os empolgamentos do seu marido Bill na campanha eleitoral, faz lembrar a Cristina Kirschner, habilidosamente utilizada pelo seu Nestor para continuar à frente da presidência da Argentina. Estas mulheres, padecentes do síndrome evita peron, fazem-me espécie.

Mãe

Via passar os carros funerários, quando era pequenina, e achava-os lindos. Eram pretos e compridos. Passavam por mim, lentos, sempre envoltos num halo de sofisticação e cerimónia. Através dos vidros fumados via coroas de flores, colchas debruadas a fio dourado e mulheres pesarosas, tão bonitas nos seus vestidos de luto. Um dia, enquanto esperávamos na paragem de autocarro perto do hospital onde trabalhava, expliquei à minha mãe que gostava daqueles carros. Ela olhou-me com horror durante longos segundos e depois largou um Ai filha, não digas disparates! Em surdina, disse que aqueles carros levavam os mortos aos cemitérios. A minha mãe falou da morte como se a morte não fosse coisa dos vivos. A morte acontecia aos outros, aos indigentes, aos doentes, aos muito velhos, inevitavelmente, aos quase mortos. A atitude da minha mãe, em relação à morte, foi de tal distância que, na minha cabeça de menina, me convenci de que ela, tão viva, nunca me morreria. Aos trinta e cinco anos continuo convencida de que a minha mãe nunca me morrerá.

(Começam a morrer as mães da minha geração.)

2008/01/30

Joaninha


(É tão bom ser mãe.)

Jaqueiras

Gosto mais de plantas do que animais. As plantas são mais discretas na cópula. O sofrimento não é evidente. De todas as árvores que vi na Índia há uma que se destaca pelo porte. A jaqueira. Tem a copa frondosa e piramidal. Os frutos nascem directamente do tronco. É extraordinária. Umas bolsas amarelas, esponjosas, enormes, crescem como angiomas cavernosos no pescoço das árvores. As jaqueiras são estranhas e, por isso, cativam. Fazem lembrar gente com bócio.

Matilhas

Procurei saber por que não os apanhavam, por que os deixavam andar em liberdade, largando doenças por toda a parte, roçando em nós a sua vagabundagem, triste e desoladora. A explicação que me deram remonta ao pai da nação indiana, que entendia que a grandeza dos estados se mede também pelo modo como tratam os seus animais. Por essa razão Ghandi promulgou uma lei que, entre outros disparates, proíbe o cativeiro e a morte dos animais vadios. Desde então os cães rondam livremente as cidades e os campos da Índia. Em Goa estão por toda a parte. Nas praias assediam as turistas gordas que descansam ao sol. Nos mercados aguardam junto dos talhantes os desperdícios do dia. Trazem no corpo todo o tipo de parasitas e doenças. De tão feios que são, com pedaços de carne doente, muitas vezes sem pêlo, fazem lembrar monstros mutantes criados em laboratório. Rivalizam com os homens as sombras dos jardins. Raramente andam sozinhos. Empoleiram-se nos bidões onde se queima o lixo. Copulam nas ruas perante a indiferença de toda a gente. Lembro-me, a propósito das cópulas caninas, de um dia em que almocei em Margão. Guardei dentro de mim a frescura do sumo de melancia e as grainhas minúsculas do baji puri. À saída do restaurante, topei com dois turistas, muito porcos, de rastas no cabelo e pés imundos, sentados de pernas abertas, maravilhados com o pitoresco da Índia. Agoniei-me mal os vi. Quis esbofeteá-los com severidade e mandá-los de volta para perto do mar, onde há praias, hotéis baratos, feiras típicas e festas com ácidos e trance music. Ainda não estava refeita dos turistas americanos quando dei de caras com dois cães que copulavam na berma da estrada, junto das bancas de vendedoras de tabaco e supari. A cadela tinha o focinho esfacelado como se alguém a tivesse arrastado pelo alcatrão. Latia dolorosamente. Afligi-me. O sexo não é muito diferente entre os animais. O macho alivia o seu desejo. A fêmea aquiesce, umas vezes cala-se, outras grita.

Remodelação

Para ministro da cultura um jurista (sou jurista, sei do que falo), que fuma charuto e, do alto da sua vida refastelada, se preocupa com as liberdades e garantias dos cidadãos. Para ministra da saúde uma mulher que não põe um pingo de maquilhagem e usa um corte de cabelo medonho, digno de uma professora de religião e moral ou de uma lésbica serôdia. Não auguro nada de bom.

2008/01/28

Na Tua Face

Reli um livro do Vergílio Ferreira e aborreci-me. Dizê-lo é sacrilégio, pecado, uma ignomínia monstruosa. Eu sei. Para me redimir rezei o terço da misericórdia que leva menos tempo e é apropriado à expiação dos pecados graves. Depois, chicoteei-me com uma vara de castanheiro que tenho sempre à mão para estas ocasiões. Tenho os costados numa lástima.

Anadia

Uma pessoa assiste aos sucessivos dias de protesto ululante das gentes de Anadia, que insistem em associar a morte do tal bebé ao fecho das urgências, e percebe que, muitas vezes, o povo é estúpido que nem uma porta.

Travesti

Quando voltava para casa, já tarde, ouvi na rádio a Barbra Straisand e os Bee-Gees a cantar “I am a woman in love”. Parei o carro e olhei os prédios em redor. Foi então que percebi uma coisa. Fosse eu um travesti, daqueles exuberantes, almodovarianos, que cantam em bares e se vestem recamados de lantejoulas e vidrinhos, como sereias grotescas, e usaria o cabelo preto, muito comprido, aos cachos, chamar-me-ia Salomé, que é nome bíblico tão bonito, e cantaria esta canção.

2008/01/27

Oboé

"Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjugação de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pára de existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir. Vou pensar melhor a ver se eu próprio entendo."
Em Nome da Terra, Vergílio Ferreira

2008/01/24

Lhasa - De cara a la pared

(Estou triste.Tenho o desespero e o cansaço do mundo no corpo.)

Flannery

Não sou uma mulher de palavra. Nunca fui. Peguei no livro de contos da Flannery O`Connor. E disso faço alarde.

Bosque

Há um bosque abandonado no meio da cidade. Os campos de basquete não têm tabelas há muito tempo. Já não existe circuito de manutenção. No parque infantil resta uma estrutura de ferro que o tempo ainda não conseguiu destruir. O relvado não é cortado há muitos anos. Está cheio de trevos, ortigas, ervas daninhas. O bosque é feito de verdes molhados e de sombras. É assustador quando o sol decai e as árvores esguias se agigantam, tomando novas formas e cores. Contam histórias de roubos e violações. Pouca gente se vê por ali. Um ou outro velho sozinho. Um homem a passear um cão. Outro sentado no banco. Há um velho que encontro sempre no bosque. Negro, de carapinha branca, magro. A primeira vez que o vi usava um saco de plástico enterrado na cabeça para o proteger da chuva miudinha. Levantava os braços ao céu como se rezasse. Da sua boca fugia um cantar baixinho e arrastado. Uma ladainha incompreensível. Tem no corpo a dormência, a lassidão, o langor próprio dos ébrios. Ontem estranhei-lhe a ausência. Quando já estava preparada para me ir embora, vi-o chegar. Ao contrário do que é habitual, trazia o passo firme e um saco de plástico nas mãos. Sentou-se num banco. Retirou do saco uma garrafa de sumo, uma caixa com sopa, uma carcaça, uma colher e começou a comer. Por causa dele continuei a correr. Olhei-o cada vez que me cruzei com ele. Sem pudor. Vê-lo sentado, sozinho e tão sóbrio, deu-me vontade de chorar.

Goa

Passei a noite de terça-feira a sonhar com o Paulo Varela Gomes e com apas de camarão. Pela manhã, a primeira coisa que fiz foi abrir o Público e procurar-lhe a crónica. Hoje escreve sobre Goa. Fala dos católicos de Goa, afastando as ideias românticas e paternalistas de certa estirpe intelectual portuguesa. Concordo com o que diz. A sociedade católica de Goa não é coisa de alguns velhotes renitentes. Pulsa de vitalidade. Não se esconde nas igrejas, não se resume à missa de domingo, não vive só nos escapulários assustadores da cidade antiga. O catolicismo está em todo o lado, na vida quotidiana das pessoas. Explode nos plissados das mulheres que assistem à missa do galo, nos fios e nos anéis de ouro que se mostram como troféus, nos sinos que tocam, pela madrugada, a chamar para a primeira missa, nos cruzeiros e capelas que nascem como cogumelos pelas estradas e veredas. Em Goa é normal encontram padres jovens, de batina, nas escolas e nas igrejas. São gente como nós. O catolicismo confere sobretudo aos goeses um sentimento de pertença, que, sendo um sentimento essencial, também assusta. Ria, a menina balão, e Lhea, um dia no balcão explicaram-me que, na escola, só brincam com as meninas católicas (hindus are very dirty! disseram, fazendo caretas). E quando lhes perguntei se casariam com um hindu não me responderam. Limitaram-se a olhar-me como se eu fosse doida. Uma menina hindu olhar-me-ia de igual modo se lhe perguntasse se alguma vez casaria com um católico. O catolicismo não morrerá, pois, em Goa. Está para ficar. Quanto à sociedade católica, que extravasa a fé, que se faz de outras coisas, de outros legados, não sei. Desconfio que daqui a alguns anos a fé católica será a única herança que restará da Índia portuguesa. O resto, a língua e a cultura, a delicadeza dos gestos, o afecto comovente por um Portugal que há muito não existe, desaparecerá à medida que forem morrendo os tais velhinhos renitentes.

2008/01/21

Livros

Descobri hoje que Portugal está cheio de leitores compulsivos. Eles estão na rádio, na televisão, nos jornais e nas revistas. No refeitório onde almoço. No comboio que me engole. Toda a gente se proclama leitor compulsivo. Não há gato-pingado que não faça alarde dos livros que lê. Não é o meu caso, asseguro. Há mais de um mês que não pego num livro. Não me apetece. Nem me faz falta. Faço mesmo questão, num mundo de literatos de pechisbeque, de nunca mais na vida pegar num livro.

The Darjeeling Limited


Libélula

Certo dia fui com os miúdos passear aos jardins do Museu do Teatro. Ventava, era Inverno, e os bosques estavam húmidos, cheios de líquenes, cogumelos e musgos. Nessa tarde, lembro-me, sentia-me feliz. Não sei porquê. Porventura era o silêncio das árvores e as gargalhadinhas dos meus filhos que me serenavam. Sempre gostei de silêncio e dos ruídos pequenos que nele adormecem. Num dos lagos do jardim encontrámos uma libelinha gigante. Perdera uma asa e, incapaz de voar, debatia-se em vão para sair do laguinho de águas escuras. Era extraordinariamente bonita. Tinha o corpo verde, de um verde vivo e luminoso. As asas, rendilhadas, muito ténues, feitas de um sopro de anjo, eram azuis. Olhando-a, a gente esquecia-se dos monstruosos olhos de insecto, revirando-se em todas as direcções, das patinhas cobertas por escamas. Os meninos procuraram paus e canas e, com a ajuda de uma folha de plátano, tentaram puxá-la o para a margem. A minha filha agarrou-se a uma gárgula esguia que se debruçava sobre as águas e, assim, encavalitada no monstro tentou salvar a libelinha. Foi então que o meu telemóvel tocou. Era a Maria Emília. Já não sei a que propósito, talvez algum livro, outra coisa qualquer, falou do Alberto Pimenta, amigo antigo que traz no aconchego do peito. Trar-me-á a mim também dentro dela? Não sei porquê esse instante ficou marcado na minha memória. Não mais esqueci a libelinha, o cheiro das árvores, o corpo da Madalena tentando salvá-la da água. A partir desse dia, na minha cabeça - que é demente e, por isso, dada a estas associações - o Alberto Pimenta transformou-se naquela libelinha. Sempre que o vejo, ou escuto, vem-me à lembrança aquele bicho, bonito e feio, que morreu só no meio das águas escuras.

(Ontem, o Alberto Pimenta esteve à conversa com a Paula Moura Pinheiro. Distinguiu a literatura-arte da literatura de consumo. A distinção pareceu-me demasiado simples. Há tanta presunção e arrogância na arte.)

2008/01/18

Roda Viva

(gosto da repetição.)

2008/01/17

Pangim (2)

Ofereceu-me chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente, interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação, que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia. Fumava. Esse gesto pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.

(O Paulo Varela Gomes, o homem de rosto familiar com quem me cruzei em Pangim, escreve, a partir desta semana, todas as quartas-feiras no Público. Ainda bem. Os goeses que conheço nutrem por ele respeito e afecto. Os meus companheiros daquela tarde, Rafael e Percival, não se cansaram de lhe elogiar a cultura e o trabalho consistente à frente da Fundação Oriente em Goa.)

Pangim (1)

A camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que, aos meus olhos, o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto. Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de um amigo. “Venha, venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos. Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados.

2008/01/15

Confissão

Nunca li nenhum livro do Luiz Pacheco. Nem tenho vontade.

Hannah


Livrarias

A livraria dos meus sonhos é a livraria de Ana e suas Irmãs, labirinto de aparente desordem, com corredores de sombras e muitas edições antigas. É lá que Elliot, num acaso tão bem planeado, esbarra em Lee e lhe fala de um poema de Cummings. Em Lisboa aparecem, e ainda bem, novas livrarias, depuradas, estilo muito clean, com cafetarias que servem chás e cafés aromáticos. É uma pena que eu goste de livrarias velhas.

Revolta

No Expresso desta semana, o António Pires de Lima, esse revolucionário que usa botões de punho só para disfarçar, a propósito da entrada em vigor da lei anti-tabágica, apelava à revolta. Não me lembro que o dito tenha apelado à indignação a propósito de qualquer outro assunto. Conta o António que agora vai ao Papa-Açorda e depois de uma bela refeição não pode fumar um charuto. A pena que eu tenho do António.

Primárias

Escolhemos um ou outro em função do acessório, do que não é político. Eu confesso-me mais inclinada para o Obama. Nem sei bem porquê. Apesar de mulher, há qualquer coisa na Sra. Clinton que não me agrada. Não é só o facto de ser loira. É demasiado cerebral e calculista. É capaz de aguentar todos os dissabores e contrariedades para levar a bom porto os seus desígnios. Não aprecio tanta determinação. Depois irritou-me o derrame certeiro daquela lágrima antes das eleições no New Hampshire. Quis mostrar que não é de ferro. Pelo contrário, é mulher e as mulheres choram. Não gostei daquela lágrima. Ficou-me atravessada. O choro, sendo próprio das mulheres, requer discrição e recolhimento. Não se chora em público a não ser que seja para convencer alguém daquilo que não somos. Já o Obama é afro-americano, um negro quase branco ou um branco quase negro, bonito, o que não é de desprezar tendo em consideração a frequência com que o novo presidente dos Estados Unidos nos vai aparecer pela frente, com reconhecidos dons de oratória, capaz de galvanizar os cépticos e entusiasmar os indecisos. É pouco. Mas é o que há. Só não gosto da mulher dele, a Michelle, que usa a carapinha lisa e tesa, com as pontas reviradas para fora, e que, nos comícios, se enlaça na cintura do marido como uma autêntica lapa. Eu não aguentava uma mulher assim. Livrava-me dela.

(Nada se discute. Ficam para segundo plano as ideias e as propostas. A raça, o género e tudo o resto continuam a ser determinantes nas nossas escolhas.)

2008/01/13

Shakira

Em vez de jogarem play station fui dar com eles, de boca aberta, a olhar para ela. Eu também olhei. Vi-lhe as pernas infindáveis, os pornográficos sapatos de plataforma, o corpo de boneca, o decote em bico e desliguei-lhes a televisão. O meu filho, e os seus amigos, gostam da Shakira. Eu também. Mas, para manter as aparências da aborrecida materna decência, digo-lhes que não.

2008/01/10

Frei Paulo

Frei Paulo percorre os corredores do hospital num passo apressado. Veste uma bata branca com uma cruz cor de clara de ovo ao peito. Traz o corpo ensopado de fé. Para a maior parte das pessoas a fé é uma manta confortável que apazigua angústias e tristezas. A fé de Frei Paulo, porém, não o serena. É um espigão que se enterrou, há muito, na carne e não o deixa descansar. Enquanto fala sorri. Nunca pára de sorrir. Foste à Índia? E foste a Calcutá, ver o trabalho da Madre Teresa? pergunta ao meu filho. O João acomoda o cansaço da viagem de regresso na cadeira e olha a avó deitada, velha e bonita. Tenta manter os olhos abertos. Diz-lhe que não foi a Calcutá, só a Bombaim, mas que já me ouviu falar da Madre Teresa. Ao contrário da irmã Lúcia, que nunca fez nada na vida, que só sabia rezar, rezar, rezar, a Madre Teresa devia ser santa. Arregalo os olhos ao meu filho e arrependo-me de certas conversas que temos. Frei Paulo dá uma gargalhada. Conta-lhe, depois, a história dos meninos de Nampula e do milagre da multiplicação dos lápis. As gargalhadas do capelão ficam a pairar, como pássaros, sobre os corpos adormecidos das mulheres da enfermaria um. Pelo canto do olho, espio a mulher da cama nº 39. Tem Alzeimer. O seu olhar, vítreo e comatoso, faz-me lembrar o dos borregos enforcados nos mercados marroquinos que pairavam sobre a minha cabeça de menina. Borregos gelatinosos. Uma goteira de sangue escorrendo-lhes do corpo em direcção ao meu. Eu fugia. Desviava o olhar dos bichos e fixava-os nas pirâmides de laranjas, nos corações dos figos-da-índia, oferecendo-me a doçura fresca dos desertos, nas espigas de milho, assando devagar, tisnadas pelas brasas mortiças de fogareiros velhos. Volto a olhar a mulher da cama nº 39. Durante a noite, quanto as luzes se apagam, arranca os drenos. Sai da enfermaria, cruza-se com os espectros dos padres jesuítas, que murmuram orações antigas. Procura o aquário da entrada principal. Olha os peixes por serem como ela. Serenos e sem lembranças. A mulher da cama nº 39, se pudesse, transformar-se-ia num enorme peixe prateado e nadaria para sempre entre cardumes de atuns e robalos. No mar ninguém estranharia a ausência de passado. Frei Paulo continua a falar. Conta histórias da Índia e de Moçambique, países que conhece bem. Pede-me para o visitar um dia na capela do hospital. Gostou de me conhecer. Di-lo várias vezes. Gargalha continuamente. Escuto-o com um afecto inesperado. Onde está a minha brusquidão? Na enfermaria voam pássaros sobre corpos doentes, há açafates de vime pelo chão, cheios de tâmaras, figos-da-índia e biscoitos de manteiga, há uma mulher-peixe adormecida, um menino cansado e um capelão risonho que fala de um Deus que queria meu.

Sarkozy

O presidente francês entende que, no que toca à imigração, há que favorecer a imigração do trabalho em detrimento da imigração familiar. A igualdade, argumentou, não é dar a cada um a mesma coisa, mas dar a cada um segundo as suas dificuldades, as suas limitações e a sua história. O imigrante é, pois, para o presidente francês, um autómato, uma peça de engrenagem, um escravo que se aceite, exclusivamente, na medida em que preenche as necessidades de trabalho da grande França. O imigrante não é visto como um homem. As suas necessidades de afecto são irrelevantes. É uma visão inacreditavelmente monstruosa. Inaceitável. Ficamos a saber que para o presidente Sarkozy, que veio esta semana anunciar-se, em jeito de messias pateta, arauto de uma política de civilização, que pretende humanizar a sociedade, há homens de primeira e homens de segunda. Espero que quando estiver em cima da Carla Bruni, comendo-a com satisfação e vaidade, um raio lhe fulmine a pila, lhe decepe vários membros e lhe deixe a carranca num estado de monstruosa feiura.

Três

Passo e amo e ardo.
Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
Levo comigo uma criança
Que nunca viu o mar.

Eugénio de Andrade

(dizem que três é a conta que Deus fez.)