2008/01/10

Frei Paulo

Frei Paulo percorre os corredores do hospital num passo apressado. Veste uma bata branca com uma cruz cor de clara de ovo ao peito. Traz o corpo ensopado de fé. Para a maior parte das pessoas a fé é uma manta confortável que apazigua angústias e tristezas. A fé de Frei Paulo, porém, não o serena. É um espigão que se enterrou, há muito, na carne e não o deixa descansar. Enquanto fala sorri. Nunca pára de sorrir. Foste à Índia? E foste a Calcutá, ver o trabalho da Madre Teresa? pergunta ao meu filho. O João acomoda o cansaço da viagem de regresso na cadeira e olha a avó deitada, velha e bonita. Tenta manter os olhos abertos. Diz-lhe que não foi a Calcutá, só a Bombaim, mas que já me ouviu falar da Madre Teresa. Ao contrário da irmã Lúcia, que nunca fez nada na vida, que só sabia rezar, rezar, rezar, a Madre Teresa devia ser santa. Arregalo os olhos ao meu filho e arrependo-me de certas conversas que temos. Frei Paulo dá uma gargalhada. Conta-lhe, depois, a história dos meninos de Nampula e do milagre da multiplicação dos lápis. As gargalhadas do capelão ficam a pairar, como pássaros, sobre os corpos adormecidos das mulheres da enfermaria um. Pelo canto do olho, espio a mulher da cama nº 39. Tem Alzeimer. O seu olhar, vítreo e comatoso, faz-me lembrar o dos borregos enforcados nos mercados marroquinos que pairavam sobre a minha cabeça de menina. Borregos gelatinosos. Uma goteira de sangue escorrendo-lhes do corpo em direcção ao meu. Eu fugia. Desviava o olhar dos bichos e fixava-os nas pirâmides de laranjas, nos corações dos figos-da-índia, oferecendo-me a doçura fresca dos desertos, nas espigas de milho, assando devagar, tisnadas pelas brasas mortiças de fogareiros velhos. Volto a olhar a mulher da cama nº 39. Durante a noite, quanto as luzes se apagam, arranca os drenos. Sai da enfermaria, cruza-se com os espectros dos padres jesuítas, que murmuram orações antigas. Procura o aquário da entrada principal. Olha os peixes por serem como ela. Serenos e sem lembranças. A mulher da cama nº 39, se pudesse, transformar-se-ia num enorme peixe prateado e nadaria para sempre entre cardumes de atuns e robalos. No mar ninguém estranharia a ausência de passado. Frei Paulo continua a falar. Conta histórias da Índia e de Moçambique, países que conhece bem. Pede-me para o visitar um dia na capela do hospital. Gostou de me conhecer. Di-lo várias vezes. Gargalha continuamente. Escuto-o com um afecto inesperado. Onde está a minha brusquidão? Na enfermaria voam pássaros sobre corpos doentes, há açafates de vime pelo chão, cheios de tâmaras, figos-da-índia e biscoitos de manteiga, há uma mulher-peixe adormecida, um menino cansado e um capelão risonho que fala de um Deus que queria meu.