2008/01/21

Libélula

Certo dia fui com os miúdos passear aos jardins do Museu do Teatro. Ventava, era Inverno, e os bosques estavam húmidos, cheios de líquenes, cogumelos e musgos. Nessa tarde, lembro-me, sentia-me feliz. Não sei porquê. Porventura era o silêncio das árvores e as gargalhadinhas dos meus filhos que me serenavam. Sempre gostei de silêncio e dos ruídos pequenos que nele adormecem. Num dos lagos do jardim encontrámos uma libelinha gigante. Perdera uma asa e, incapaz de voar, debatia-se em vão para sair do laguinho de águas escuras. Era extraordinariamente bonita. Tinha o corpo verde, de um verde vivo e luminoso. As asas, rendilhadas, muito ténues, feitas de um sopro de anjo, eram azuis. Olhando-a, a gente esquecia-se dos monstruosos olhos de insecto, revirando-se em todas as direcções, das patinhas cobertas por escamas. Os meninos procuraram paus e canas e, com a ajuda de uma folha de plátano, tentaram puxá-la o para a margem. A minha filha agarrou-se a uma gárgula esguia que se debruçava sobre as águas e, assim, encavalitada no monstro tentou salvar a libelinha. Foi então que o meu telemóvel tocou. Era a Maria Emília. Já não sei a que propósito, talvez algum livro, outra coisa qualquer, falou do Alberto Pimenta, amigo antigo que traz no aconchego do peito. Trar-me-á a mim também dentro dela? Não sei porquê esse instante ficou marcado na minha memória. Não mais esqueci a libelinha, o cheiro das árvores, o corpo da Madalena tentando salvá-la da água. A partir desse dia, na minha cabeça - que é demente e, por isso, dada a estas associações - o Alberto Pimenta transformou-se naquela libelinha. Sempre que o vejo, ou escuto, vem-me à lembrança aquele bicho, bonito e feio, que morreu só no meio das águas escuras.

(Ontem, o Alberto Pimenta esteve à conversa com a Paula Moura Pinheiro. Distinguiu a literatura-arte da literatura de consumo. A distinção pareceu-me demasiado simples. Há tanta presunção e arrogância na arte.)