2009/09/16

Menina Elsa

Desligou o telefone para atender a mulher que naquele instante entrava no consultório. A sala de espera estava já cheia. Dois homens grandes, musculados e de braços bronzeados, falavam junto de uma janela onde um cóleo vermelho crescia em altura, muito delgadinho e espigado. Uma rapariga nova, vestida com descuido, chinelos enfiados nos pés, o cabelo hirsuto, num desalinho, folheava revistas cor-de-rosa. Um casal velho aguardava imóvel. Era o homem que estava doente. A pele tinha-a macilenta, baça. Tremia-lhe o olhar e as mãos. A mulher estava de olhos fechados. Parecia descansar. Um rapaz, muito gordo, o rego do rabo peludo a espreitar nas calças de ganga, dormitava no colo da mãe. O televisor, colocado num canto do tecto, parecendo um enorme olho, mostrava imagens da campanha. Candidatos sorridentes. Comícios cheios de velhas sem dentes, chegando de passeio nas camionetas dos partidos para verem os senhores doutores e almoçarem no pavilhão da câmara municipal. Bandeiras agitadas por obrigação, sem entusiasmo ou alegria. A menina Elsa verificou o nome da mulher na sua agenda. Vinha com um atraso de meia hora. Não fazia mal. As consultas estavam atrasadas. Tinha cinco pessoas à sua frente. Estas consultas não são como as outras, explicou. Podem durar cinco minutos ou cinco horas, e soltou uma gargalhada pequenina satisfeita com o seu exagero.

Voltou a pegar no auscultador e a marcar o número do ministério onde a irmã trabalhava. Espreitou o televisor da sala de espera. Lá estava o senhor primeiro-ministro. Sempre elegante e distinto. E muito sensível. Explicara numa entrevista que gostava de poesia. Lia o Pessoa e o Camões. Ficara deslumbrada com tal confissão. Só as pessoas muito cultas gostavam de poesia. A menina Elsa só lera o Camões no liceu e achara a sua obra longa e aborrecida. Ao Pessoa só lhe conhecia o chapéu, a figura franzina, o bigodinho ridículo. Poemas, nem um. Tinha, porém, uma admiração grande e sincera por toda a gente que lia poesia. Também por quem ia ao teatro e a concertos de música clássica. Só gente de muita classe frequentava esses círculos de elegância e snobismo cultural aos quais não pertencia mas que olhava com espantosa veneração. Ficara tocada com a sensibilidade do primeiro-ministro. Um homem assim, culto e sofisticado, capaz de citar poemas do Fernando Pessoa numa conversa, capaz mesmo de, no final de um dia de trabalho, depois da estafa da política, do cansaço das decisões, calçar as pantufas e ler a lírica camoniana, merecia a sua imensa admiração. Melhor, merecia o seu voto. De certeza absoluta que a outra candidata não lia poesia. Era um estafermo. E tão feiinha. E tão mal vestida. Coitadita.

Pousou o auscultador. A irmã não lhe atendia o telefonema. Olhou as marcações daquele dia. A senhora doutora tinha um acordo com a polícia e com o sindicato dos bancários. Os polícias e os bancários eram muito dados a doenças do foro psiquiátrico. Percebera isso mal começara a trabalhar no consultório. Deviam ser profissões de grande desgaste. Fraqueja-lhes amiúde o espírito. Vinha-lhes depois uma astenia, uma prostração generalizada, ficavam muitas vezes com um olhar estranho, ausente. Era sempre um corrupio, de manhã à noite, naquele consultório. A menina Elsa via-se aflita para gerir a agenda. Tinha os seus truques e regras. Em frente do nome de cada paciente colocava, com uma letra redonda, as suas notas pessoais. Eram apontamentos breves que a ajudavam a gerir com justiça a agenda da senhora doutora. Por exemplo, as mulheres com filhos tinham prioridade na marcação das consultas. Os homens e as solteiras que ficassem com as consultas do final do dia. A menina Elsa não tinha filhos mas sabia, pela vida das irmãs, que a maternidade era muito trabalhosa. Exigia permanente assistência. Telefonava na véspera a confirmar as marcações. Usava de diplomacia para justificar atrasos e urgências. Conseguia encaixar sempre mais um paciente. Conhecia-os pelo nome próprio e pelo apelido. Bastava que lá fossem uma vez que, na volta, já os cumprimentava com um enorme sorriso.

A senhora doutora era diferente. Sorria pouco. Sempre distante e fria. A menina Elsa, pelo contrário, era uma mulher de afectos, com um coração muito açucarado e uma voz envolvente. Mesmo os agentes da polícia, habituados à aspereza da vida, a princípio, estranhavam aquela voz meiga e aqueles modos familiares e gentis. Acabavam por se acostumar e com ela partilhar alguns dos seus padecimentos. As noites mal dormidas, os pesadelos, os tremeliques, os efeitos da medicação. Ela tinha sempre uma palavra de conforto e alento. Já se habituara aos nomes das doenças, dos medicamentos, das marcas. O triticum e o lexotan tratavam depressões levezinhas. Os doentes bipolares tomavam sempre lítio e ácido valpróico. Os esquizofrénicos tinham de se tratar com anti-psicópicos, por causa dos delírios, e às vezes, com tranquilizantes. O valuim e o zoldipem eram muito eficazes. A verdade é que a medicina psiquiátrica já tinha poucos segredos para a menina Elsa. Se um dia acontecesse alguma coisa à senhora doutora, que deus nosso senhor o não permitisse e a mantivesse por cá, distante e fria, por muitos mais anos, ela conseguiria assegurar o bem estar dos agentes maníacos, dos bancários deprimidos, das mães de família exaustas, escutando-lhe os desabafos e prescrevendo-lhes com a sua letra muito redonda os remediozinhos com nomes esquisitos.

(Fui ontem à psiquiatra nova que acertou, logo à primeira, na minha medicação. Não me reconheço. Ando moderadamente feliz. Um mês inteiro e só chorei duas vezes. Não sonho com pulsos cortados. Nem encontro alívio nas janelas abertas. Quando lá cheguei tinha 15 pessoas à minha frente. Não fui sequer capaz de insultar a menina Elsa.)