Fui ao celeiro comprar uns comprimidos para emagrecer. A fome fez-me comprar uma fatia de torta de cenoura que se atravessou no meu caminho. Eu bem tentei olhar apenas para os escaparates dos suplementos que tudo tratam, das cápsulas que amenizam qualquer achaque, dos complexos vitamínicos que solucionam todos os padecimentos. Entretenho-me muitas vezes a deambular pelo corredor dos suplementos. Descansa-me saber que, da obstipação à incontinência, da calvície à frigidez, do excesso de peso à fadiga, há sempre uma solução fácil para os nossos problemas. Mas, sei lá como, os meus olhos desviaram-se para a triste ilha dos pastéis de algas, dos pães de arroz, dos croquetes de soja. Lá estava, no meio daqueles pitéus, a tal fatia de torta de cenoura. Sabe deus que, de todos os bolos que existem, nenhum me desperta mais a gula do que os que são feitos com cenoura. Os bolos, as tortas, os sonhos de cenoura ganham uma cor, uma textura, um paladar único. Já na rua, os comprimidos para emagrecer enfiados no bolso do sobretudo, antes de trincar a fatia de torta (gosto de comer enquanto ando), pus-me a ler a lista dos ingredientes: cenoura, canela, geleia de milho, farinha tipo 65, coco. Tal como desconfiava, nem uma pitada de açúcar. Nem uma colherzinha. Nem sequer uns salpicos de açúcar mascavado. Insultei, de imediato, a comida macrobiótica, os gurus da comida saudável, os fundamentalistas que desejam viver até aos cem anos uma vida insuportavelmente sã e regrada, enfardando feijoadas de seitan e lasanhas de tofu. Lembrei-me, então, de uma colega do banco, reformada já há muito tempo, a Albertina. Era um amor de pessoa, gentil e generosa, muito delicada e amável. Fotografava muito bem. Tinha um marido mais novo que era professor universitário. Amava-o com muita serenidade. Um dia a Albertina trouxe o filho ao banco e a secretária da direcção ofereceu ao menino um pacotinho de pastilhas de chocolate. A Albertina agradeceu a oferta, muito gentil, e explicou que os seus filhos não comiam doces, nem rebuçados, nem caramelos, nem chocolates, nem pastilhas. Rematou, dizendo que os miúdos nunca comiam dessas coisas e, por isso, rejeitavam o sabor enjoativo, excessivo dessas gulodices. Quando me contaram a história, imaginei o menino já com as mãos no ar, o gesto de aceitação interrompido, fixando os olhos na secretária e no pacotinho de pastilhas de chocolate, escutando a explicação da mãe. Achei aquilo tudo triste… Tão triste. Uma criança que não conhecia o sabor do chocolate. Lembrei-me, pois, da Albertina e do seu filho, que cresceu comendo gelatinas azuis de ágar-ágar e boiões de sobremesas de soja, quando meti a fatia de torta de cenoura à boca. Foi então que, ali, no meio da rua mais feia de cidade, onde vive um cristo muito alto e loiro e as árvores se enchem de flores cor de arando, se assistiu a um fenómeno estranho. Pelos poros da minha pele escaparam-se opiniões antigas e certezas inabaláveis. Primeiro fiquei oca como um cabaça. Depois fui mirrando, mirrando. Até que desapareci.
(A torta, a puta da torta, era excepcionalmente boa.)
(A torta, a puta da torta, era excepcionalmente boa.)