2010/03/09

Caos

Há um balcão de cafés no piso inferior da estação de comboios. Dentro desse balcão costuma estar um empregado jovem, feio, magro e enfermiço. O homem do balcão, na realidade, não é enfermiço. É sadio e ligeiramente balofo. Esclareço: encontrei a palavra “enfermiço”, pela manhã, no livro que ando a ler e apanhei-a. Sou uma exímia caçadora de palavras. Tenho-as em cativeiro durante algum tempo. Depois liberto-as. Adiante. O empregado usa o cabelo arrepiado, como se fosse um ouriço, e no sobrolho direito traz a cicatriz de um piercing antigo. Movimenta-se com rapidez e eficácia. Mantém as bancadas impecavelmente limpas e rutilantes. Os escaparates das pastilhas elásticas e das batatas fritas estão sempre alinhados em cima da arca de gelados. Tira bicas e galões mornos para os passageiros que param no seu balcão antes de regressarem aos subúrbios. Massamá, Mem Martins, Cacém, Amadora, Bobadela. São sobretudo mulheres. Elas riem das suas graçolas e comentários. Nunca é grosseiro ou inconveniente. Trata por “donas” as mulheres que já conhece. A maior parte delas leva o rosto cansado, o cabelo desgrenhado do vento e da chuva, as camisolas com borbotos, as mães ásperas. Não usam botas de cano alto. Não sabem que este ano está na moda usar franja. O rapaz do cabelo arrepiado sabe que tem um papel importante na vida das mulheres que apanham os comboios da tarde. O café é um pretexto para, por breves instantes, respirarem fundo antes de mergulharem no caos doméstico.