2010/03/12

Parece que vai chover.

Era o tempo dos cisnes, dos patos, das folhas da árvore de borracha que cheiravam a manteiga, do Jardim do Torel onde viviam todos os bichos-da-seda da cidade, enrolados sobre si, alheios ao ruído e ao frenesim. Era o tempo dos sonhos. Adormecia e, na escuridão, apareciam árvores com copas cor de cobre, milheirais, precipícios, gigantes que tinham sempre o rosto meigo de um primo afastado que estava internado no Júlio de Matos. Também eu, por vezes, aparecia na escuridão da noite e dos sonhos. Usava socas e tinha as unhas roídas. Nesse tempo não percebia ainda o meu corpo. Sabia apenas que se apertasse as coxas com muita força, durante algum tempo, até ao limite da exaustão, o meu avesso, o meu lado de dentro, seria invadido por uma crescente onda de calor que, pouco depois, se transformava numa sensação única, a melhor que até então experimentara. Aquela sensação durava pouco, era um arrepio, uma vertigem, uma explosão, mas era de uma intensidade tal que valia bem o esforço físico que exigia de mim. Depois da exaustão e do prazer chegava um cansaço morno, muito bom, que me deixava o corpo adormecido e apaziguado. Fazia-o em segredo porque era uma coisa boa e, naquele tempo, todas as coisas verdadeiramente boas - mascar pastilhas elásticas, beber coca-colas, brincar no pátio, experimentar os sapatos de saltos altos da minha tia, enterrar as mãos na terra, pegar na minha irmã recém-nascida ao colo - eram proibidas. Fi-lo durante a infância e a adolescência. Sempre em segredo. Partilhava o quarto com a minha irmã. Esperava que ela adormecesse. Na escuridão, em vez dos gigantes e das árvores com copas cor de cobre, apareciam então mãos que percorriam o meu corpo com vagar e urgência. Nunca percebi se a minha irmã, aconchegada no seu sono, escutava o restolhar dos lençóis e os gemidos quase inaudíveis que, volta e meia, não conseguia calar. Só sabia que a minha escuridão era diferente da dela.
Durante muito tempo, uma eternidade, achei que era a única rapariga do mundo que me masturbava. Sabia que os rapazes o faziam. Falavam entre eles sobre o assunto, vangloriando-se, de modo um pouco absurdo, das raparigas que imaginavam enquanto se tocavam freneticamente. A masturbação (palavra proscrita naquela altura no universo feminino e agora também) era permitida aos rapazes porque era uma inevitabilidade da sua natureza. Revelava virilidade e mostrava o lugar que homens e mulheres tinham na ordem do mundo. Os homens masturbavam-se, as mulheres não. Ponto. O prazer que uma mulher sozinha arrancasse do seu corpo era pecado, era uma coisa muito suja, muito porca, sinal de desvario, de transvio. Cabia aos homens inaugurar a vida sexual das suas namoradas e esposas. Na verdade, devia ser assim porque eu não conhecia uma única rapariga que se masturbasse. As minhas amigas nunca falavam do assunto e faziam um esgar de sincero nojo se a palavra “masturbação” fosse pronunciada. Convenci-me, pois, que era a única rapariga do mundo que pensava em sexo. Esse sentimento de orfandade, de pária, de indigente, deixava-me num estado de inquietude e incerteza. Por um lado, cedia aos ditames dos bons costumes e achava que estava perdida. Lastimava a minha pouca sorte. Queria ser como as outras raparigas que viviam dentro de corpos mortos. Essas raparigas, já mortas, morriam todas as noites um bocadinho mais. Era assim que eu queria ser. A vida de uma mulher morta é um sossego. Às vezes, porém, dava por mim a achar que o meu segredo tinha um lado bom: a prática de tantos e tantos anos de masturbação havia de me tornar mais tarde numa amante eficiente e competente.

Percebi que era uma mulher normal, alguns anos mais tarde, quando vi o primeiro filme do Steven Soderbergh. Foi uma revelação. Afinal havia mulheres como eu, mulheres que gostavam de sexo e que não esperavam pelos homens para cumprir os seus desejos. Suspirei de alívio. Ainda por cima, as mulheres desse filme, são só duas, eram muito mais bonitas e interessantes do que aquelas com quem me cruzava no bairro e na universidade. Tal facto consolou-me. Apaixonei-me naturalmente pelo James Spader, o impotente. Ainda hoje, quando penso no assunto, acho que o parceiro ideal para mim devia ser assim, impotente. Mas isso são conversas que ficam para outra ocasião. Nesse verão pedi à minha mãe que me costurasse um vestido largo, tipo bata, com botões à frente, igual aos que a Andie MacDowell usa no filme. Acreditei que um dia havia de amanhecer perto de alguém a quem pudesse dizer “parece que vai chover” e que esse alguém saberia ler tudo o que essas palavras não dizem. Hoje, passados tantos anos, lido bem com o meu onanismo. Faz parte de mim. É uma competência. Uma espécie de qualificação.