2010/03/03

Pensão Coimbra

Há muitos anos, chegou, vinda de Goa, uma prima afastada do meu pai. Queria ser freira. Vinha para o lar das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Ou coisa que o valha. Chamava-se Maria de Lurdes. Era jovem, pálida, quase branca, cheia de sardas, o cabelo sempre preso numa trança grossa. Os lábios eram carnudos e tinham a cor das framboesas frescas. Era bonita se quisesse ser bonita. Achei-a insuportável, uma mosquinha morta, mal falava. Às vezes, dava por ela a fixar-me com um olhar triste e um sorriso pateta nos lábios. Esteve uma semana em nossa casa. O meu pai levou-a a visitar Fátima, o Cristo Rei e a comer queijadas em Sintra. Depois, conforme combinado, foi entregá-la ao cuidado das freiras. Soube-se, passado pouco tempo, que tinha mandado às ortigas a vocação religiosa. Afinal não lhe interessava uma vida de clausura, orando a deus nosso senhor, prestando auxílio aos pobres, ensinando o pai-nosso aos meninos da catequese e aos adultos do catecumenato. Estava, havia dias, na Pensão Coimbra, ali na Praça da Figueira.

Tinha vindo da Índia com um homem mais velho que abandonara a mulher e dois filhos pequenos em Margão. Custou-me acreditar quando a minha mãe me contou, em surdina, com a gravidade que o assunto lhe merecia, que a Maria de Lurdes era amante de um homem casado. Imagina tu, com aquele ar de quem não faz mal a uma mosca e a estragar uma família!, disse-me, piscando os seus olhos pequeninos. Passei naquele instante a olhá-la, à Maria de Lurdes, com outros olhos. Com certa admiração. Afinal era mulher de carne e osso, capaz de sentir a urgência do desejo e de lutar por ele. Toda a gente se escandalizou. De Goa chegaram telefonemas longos e doridos. O meu pai ficava ao telefone, com a carranca fechada, a beiçola muito estendida, escutando os lamentos e os urros da família mais próxima da Maria de Lurdes. Pediam, por tudo, que a salvasse de uma vida de perdição e pecado. Em Goa não há divórcios nem separações. Não há vergonha maior para uma família do que um casamento desavindo. Um divórcio é muito, muito pior, do que uma mulher só dar à luz meninas. O meu pai aceitou a missão e certa noite, lembro-me como se fosse hoje, rumámos à pensão Coimbra. Era uma noite de Inverno. O Natal chegaria em breve e as ruas estavam já iluminadas.


Fiquei no carro à espera com a minha mãe enquanto o meu pai subiu para falar com os amantes. Imaginei-os, sem falar português, vindos da pacatez de uma aldeia goesa para o turbilhão de uma cidade que não compreendiam. Imaginei-os, transidos de frio, deitados numa cama de pensão, a escuridão húmida do quarto cobrindo-lhes o corpo. Imaginei-os, nus, amando-se com embaraço e tristeza. Tudo aquilo era profundamente miserável e desolador. Tive vontade de chorar. O meu pai chegou pouco depois. Não conseguira convencê-los a voltar. Soubemos, passado algum tempo, que tinham ido para Londres. Trabalharam na cozinha de um restaurante. Ela lavou loiça até as suas mãos gretarem e sangrarem. Ele tratou dos desperdícios até o cheiro do lixo se entranhar nas fibras da sua roupa de agasalho. A dureza da vida que levaram em Londres fez com que o seu amor acabasse. Acontece muitas vezes. Só nos livros e nos filmes é que o amor vence montanhas, ultrapassa dificuldades, é enorme, belo e eterno, como um diamante. Na vida real, o amor não tem essa grandeza nem esse brilho. É perecível. Esgota-se. O amor vale pouco. O goês voltou para a mulher e para os seus filhos. A Maria de Lurdes voltou para sua aldeia. A família, muito sábia, recebeu-a em silêncio. Nunca falaram sobre o assunto. A vida continuou como se nada tivesse acontecido.