2012/05/01

Aninhas e os sapatos de couro envernizado (1)


Espíritos de luz perseguiram-na durante muito tempo por florestas e precipícios. As fantasmagóricas aparições eram parecidas com os seus filhos, as mesmas feições, corpos ainda tenros, olhos doces, redondos, bocas carnudas. Queriam abraçá-la. Fugiu-lhes durante toda a noite. Acordou cansada de tanto fugir. Levantou-se a custo. Entrou na casa de banho e evitou olhar-se ao espelho. Abriu o armário. Tirou uma caixinha púrpura onde guardava os comprimidos que roubava à mãe. Aninhas, em certos assuntos, era uma mulher racional, sem pinga de hesitação ou amedrontamento. Sempre que visitava os pais, inventava uma desculpa para ir ao escritório, abria o armário dos medicamentos, tirava um ou dois comprimidos das lamelas prateadas que a mãe organizava em tomas diárias, necessárias para o tratamento de várias doenças: depressão crónica, hipertiroidismo, diabetes, artrite reumatóide. Sentada na sanita, as calças do pijama enroladas no chão, o cheiro adocicado da urina a espalhar-se pela manhã, pôs-se a contá-los, setenta e um, setenta e dois, setenta e três, era já um cocktail de considerável letalidade, para além de anti-depressivos e ansiolíticos, tinha também vários analgésicos, aqui estão cinco clonixs e sete voltarens, não servem para matar, mas sempre ajudam à festa. Era assim, exactamente assim, que pensava. Estava a contar os comprimidos, questionando-se sobre a eficácia da dose, quando a voz do filho mais novo, chamando-a, chegou do quarto. Escondeu a caixinha no armário, atrás de uma embalagem de tampões. Arranjou-se, deixou os filhos na escola e foi trabalhar. À hora do almoço, comeu uma sopa de nabiças e um mini-prato de arroz de polvo. Volta e meia, lembrava-se da caixinha púrpura com os setenta e três comprimidos. Não tinha ainda tomado a decisão de os tomar, mas aliviava-a saber que os tinha ali, à mão de semear, prontos a livrá-la de uma angústia maior.