Espíritos de luz
perseguiram-na durante muito tempo por florestas e precipícios. As
fantasmagóricas aparições eram parecidas com os seus filhos, as mesmas feições,
corpos ainda tenros, olhos doces, redondos, bocas carnudas. Queriam abraçá-la.
Fugiu-lhes durante toda a noite. Acordou cansada de tanto fugir. Levantou-se a
custo. Entrou na casa de banho e evitou olhar-se ao espelho. Abriu o armário.
Tirou uma caixinha púrpura onde guardava os comprimidos que roubava à mãe. Aninhas,
em certos assuntos, era uma mulher racional, sem pinga de hesitação ou
amedrontamento. Sempre que visitava os pais, inventava uma desculpa para ir ao
escritório, abria o armário dos medicamentos, tirava um ou dois comprimidos das
lamelas prateadas que a mãe organizava em tomas diárias, necessárias para o
tratamento de várias doenças: depressão crónica, hipertiroidismo, diabetes,
artrite reumatóide. Sentada na sanita, as calças do pijama enroladas no chão, o
cheiro adocicado da urina a espalhar-se pela manhã, pôs-se a contá-los, setenta
e um, setenta e dois, setenta e três, era já um cocktail de considerável
letalidade, para além de anti-depressivos e ansiolíticos, tinha também vários
analgésicos, aqui estão cinco clonixs e sete voltarens, não servem para matar,
mas sempre ajudam à festa. Era assim, exactamente assim, que pensava. Estava a contar
os comprimidos, questionando-se sobre a eficácia da dose, quando a voz do filho
mais novo, chamando-a, chegou do quarto. Escondeu a caixinha no armário, atrás
de uma embalagem de tampões. Arranjou-se, deixou os filhos na escola e foi
trabalhar. À hora do almoço, comeu uma sopa de nabiças e um mini-prato de arroz
de polvo. Volta e meia, lembrava-se da caixinha púrpura com os setenta e três
comprimidos. Não tinha ainda tomado a decisão de os tomar, mas aliviava-a saber
que os tinha ali, à mão de semear, prontos a livrá-la de uma angústia maior.