Ao final do dia, no caminho para casa, passou por uma sapataria que nunca
lhe despertara interesse. Era uma sapataria que vendia apenas sapatos e malas
italianas, estilo clássico, de irrepreensível sofisticação, modelos que podiam,
sem causar embaraço, ser usados por rainhas e princesas em cerimónias de
estado. Na montra, ao centro, estavam uns sapatos pretos de couro envernizado, simples,
biqueira redonda, declive acentuado pelo salto de sete centímetros, perspectiva
feminina de fuga. Entrou e pediu para os experimentar. Olhou a etiqueta do
preço: trezentos e dez euros. Custava-lhe dar tanto dinheiro por uns sapatos, havia
ainda nela laivos de uma juventude de punho erguido que lhe provocava um
levíssimo sentimento de culpa por ceder à luxuria e à frivolidade. Pagou-os.
Porém, mal saiu da loja, percebeu a irracionalidade do seu gesto. A compra de
tais sapatos não era compatível com o seu desejo de morte. Para que queria uns
sapatos de trezentos e dez euros se tomasse os setenta e três comprimidos,
anti-depressivos, ansiolíticos, voltarens e clonixs, que estavam dentro da
caixinha púrpura? Sentiu-se estúpida. Acontecia-lhe muitas vezes sentir-se
assim, estúpida, ridícula, com vergonha da sua angústia, por não a ter
coerente, estruturada, e, sobretudo, consequente. A verdade, porém, é que se
tomasse os comprimidos corria o risco de não gozar os seus sapatos de couro
envernizado. Talvez a mãe os escolhesse para os empregados da agência funerária lhos
calçarem no funeral; deitada no caixão, numa ponta, um rosto morto de
maquilhagem retocada, na outra, o brilho dos sapatos pretos. Ir a enterrar com
uns sapatos italianos de trezentos e dez euros parecia-lhe um desperdício. Ou
pior, muito pior, talvez o marido, vendo-os novos, a etiqueta a assegurar a
genuinidade do couro, o luxo do produto, a sola por estrear, os oferecesse à
namorada que certamente arranjaria para o ajudar a tomar conta dos dois
rapazes. Aninhas tentou imaginar a nova namorada do marido. Unhas
rectangulares, pintadas de vermelho, sobrancelhas aparadas, ordinária sem ter consciência de o ser, comum, anódina, levando
os seus sapatos italianos na linha azul do metro, a caminho de um salão de
estética dos subúrbios. Abriu a arcada
das narinas e bufou brandamente.
Pela tardinha, quando chegou a casa, o filho mais novo pela mão, a primeira
coisa que fez foi deitar fora os comprimidos da caixinha púrpura. A água da
sanita tingiu-se de rosa clarinho por causa do revestimento entérico das cápsulas
grenás que a mãe tomava para a artrite reumatóide. Depois, mudou de roupa e
calçou os novos sapatos. Olhou-os e a elegância era tamanha que lhe
pareceu que os pés não lhe pertenciam. O salto acentuava a curva da sua perna.
Apesar de bonita, Aninhas não suscitava desejo, paixão ou amor. Era apenas um
valor seguro. A sua beleza, tal como a sua angústia, era ridícula e triste por
ser inconsequente. Aqueceu o jantar, estudou geografia com o filho mais velho,
leu várias histórias ao mais novo, despediu-se do marido que acabava a sempre o
dia a ver séries de investigação criminal. Sempre com os sapatos do couro
envernizado calçados. Só os descalçou quando se foi deitar. Nessa noite dormiu
descansada, levou o sono até de manhã, sem espíritos de olhos doces, sem
precipícios, sem nada.