2010/09/04

Fissura Anal

É cedo. O sol espalha sobre a estação uma claridade da cor da clara do ovo. Duas mulheres conversam. A mais velha, uma negra cheia de pulseiras que chocalham, explica as razões do mau feitio do seu marido. A voz delicada e as unhas pintadas de rosa chá dão-lhe um ar cuidado, quase requintado. Sabes, é que lhe custa muito evacuar, diz, referindo-se ao marido. A outra mulher, magra, tisnada do sol, um pouco ordinária no seu macacão lilás de malha de algodão, ligeiramente borbotado, escuta-a em silêncio. Não é fácil, logo pela manhã, apanhar com confidências daquelas. Os padecimentos do canal anal, as ralações obstipantes, a incapacidade de relaxamento do esfíncter alheio, são assuntos melindrosos. Revelam a nossa natureza mais primitiva. São assuntos que, a todo o custo, se devem evitar em conversas sociais. Mas a negra é muito segura de si própria. O tema não a embaraça. Depois grita comigo. Não imaginas a gritaria de ontem só porque lhe disse para por vaselina antes de ir à casa de banho. Chamou-me tudo. E continua por aí fora, desvalorizando o mau feitio do marido, as injúrias, os palavrões, o rosto carregado e furibundo. Está nisto muito tempo. Elenca as características das fezes do marido com uma lucidez médica, de escatologista experiente, encartada. São fezes duras, empedernidas, de cor baça por estarem tanto tempo na ampola rectal. A mulher branca vai concordando com a cabeça. Eu sei como é…Também tive hemorróidas quando a minha filha nasceu, atreve-se, por fim, a dizer com um fiozinho de voz. A negra das pulseiras fuzila-a com os olhos. Por breves instantes, perde a compostura. Não lhe admite tal comparação. Ele não tem hemorróidas. O que ele tem, coitado, é uma fissura anal crónica. Olha para a outra com superioridade e dá uma gargalhadinha forçada, agradecida por o marido a poupar ao constrangimento daquela palavra. Uma fissura anal é um padecimento razoável, uma justificação boa para o desprezo que o marido lhe dedica, para o fracasso da sua vida conjugal.